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RESENHAS

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A palavra que celebra a vida

Ronaldo Cagiano*

Se para Augusto Meyer, “a memória da infância é uma ilha perdida”, para Miguel Sanches Netto, é uma busca ancestral de suas raízes sociais e psicológicas. É o que podemos sentir em sua produção literária, tanto na poesia com na prosa.

Como em seu romance de estréia (“Chove sobre minha infância, Ed. Record, 2000), em que faz sua incursão autobiográfica, explorando as razões e sentidos de sua vida, em seu novo livro - “Hóspede Secreto” (vencedor da categoria contos do Prêmio Cruz e Souza 2002, de Santa Catarina) - o autor paranaense respira a atmosfera provincial de sua Peabiru telúrica, para recolher histórias e compor um interessante painel de suas lembranças afetivas.

Os contos de “Hóspede secreto” situam-se, muitas vezes na fronteira entre o real e o fantástico. Por outro lado, guardam entre si uma analogia circunstancial, pois são impulsionados pela necessidade de desvelar o passado, que certamente preencheu de histórias reais a cabeça de um menino-leitor que, em seus recatados quintais de antigamente, já dava sinais de concentração e isolamento, através do que manejava mentalmente a sua ficção a partir do que (vi)via, lia e ouvia, no seu quotidiano matizado de acontecimentos comuns ou inusitados.

Literatura do imaginário, como projeção do real ou do onírico, esses contos de Miguel Sanches Netto levam-nos à instância da solidão. Não a da tristeza interior, metafísica ou psicológica, mas aquela em que se processa a busca do necessário auto-mergulho para a confecção de uma arte sintonizada com os valores humanos.

Hoje em dia, a literatura padece de um certo raquitismo, fruto da ociosidade ou estagnação em que sucumbiram certos autores pretensos à vanguarda e à invenção que, na verdade não conseguem superar o medíocre patamar da vanguardice e da mediocridade. Presos ao desbunde midiático e escravos de uma crítica cada vez mais afetuosa e oportunista, com suas massagens de egos, que promove o besteirol, na linha de uma certa estética da transgressão e da obscenidade, promovem o exercício, a esmo, de uma informalidade narrativa que resvala na esquisitice e choca pelo que tem de exótico, não pela criatividade, talento ou densidade. A ousadia formal deu lugar ao exibicionismo de linguagem, ao malabarismo estético, à vulgata processual. A novidade não tem mais graça, porque não consegue despistar a incompetência para o cuidado, o acabamento, a trama e o ritmo e redundam num mascaramento da arte em todos os níveis com o falso experimentalismo e a “ousadia” de ocasião.

Na contra-corrente desse processo facilitatório, oriundo de uma literatura digerível pelos cadernos de cultura dominado por determinada crítica teórica, soberba e introvertida, está a produção literária (poesia, prosa, crítica e ensaio) de Miguel Sanches Netto. Sua bibliografia, ainda que pouco numerosa, supera com vantagem, em domínio da técnica narrativa e no trato de elementos conceituais e estéticos – portanto, uma obra de qualidade – àquela demasiadamente bafejada pela grande mídia, que, a meu ver, está reduzida a uma sucata intelectual, que não resistirá aos legítimos leitores e cultores da boa literatura.

A realidade humana, captando um universo anterior, quando a infância se instaurava como território de aprendizado e indagações, adquire uma projeção poética nos contos de “Hóspede secreto”, revisitado por Miguel em momentos de sutileza, capturando do inconsciente coletivo aquelas lembranças comuns a todos nós. A vida, a morte, os conflitos familiares, o eterno dilema da passagem do tempo, do enfrentamento dos medos, a solidão existencial, os pequenos dramas, a tentativa dialética de conciliar os extremos da vida -enfim, o mundo com suas singularidades domina os contos desse livro premiado e que está a merecer uma edição nacional.

Não se sai ileso deste livro, sem que nos reencontremos com nossos vícios e virtudes, porque ele reflete um universo simbólico: a busca da identidade (com nosso passado, com nossos valores e sentimentos) e isso, com a necessária profundidade e uma propensão à reflexão filosófica, mas sem perder o lirismo e o encanto das pequenas coisas.

Miguel Sanches Netto integra uma geração de autores que buscam nas histórias comuns o resgate do ser e de suas raízes, com uma prosa que é densa, sem perder a cristalinidade e a poesia. Desse grupo, podemos destacar Carlos Herculano Lopes, Jádson Barros Neves, João Carrascoza, Edmar Monteiro Filho, Altair Martins, Alaor Barbosa e Whisne Fraga. E Sanches, sem favor algum de certas aclamadas obras (de duvidoso mérito) do eixo Rio-SP, vai inscrevendo seu nome no rol da boa literatura, aquela que, sem nenhuma aparência de falso-cosmopolitismo, contribui para a reaproximação com nossa aldeia, não só a geográfica (na qual, segundo Tolstoi, reside a universalidade), mas a espiritual e afetiva (a que nos humaniza, a que celebra a vida, a que privilegia a memória e nos reconcilia com a civilização). Por isso, o autor vai beber na infância, colher matéria e circunstância para sua confecção literária, talvez querendo, como Manuel Bandeira, ir ao encontro deste “anseio infinito e vão de possuir o que me possui”.

Prêmio Cruz e Souza
O concurso de contos, instituído pela Fundação Catarinense de Cultura e Academia Catarinense de Letras, foi vencido por Miguel Sanches Neto, professor e escritor do Paraná. O livro dele se chama Hóspede secreto.


Sobre o Autor

Ronaldo Cagiano: De Cataguases, cidade mineira berço de tradições culturais e importantes movimentos estéticos, surgiu Ronaldo Cagiano. É funcionário da CAIXA. Colabora em diversos jornais do Brasil e exterior, publicando artigos, ensaios, crítica literária, poesia e contos, tendo sido premiado em alguns certames literários. Participa de diversas antologias nacionais e estrangeiras. Publica resenhas no Jornal da Tarde (SP), Hoje em Dia (BH), Jornal de Brasília e Correio Braziliense, dentre outros. Tem poemas publicados na revista CULT e em outros suplementos. Obteve 1º lugar no concurso "Bolsa Brasília de Produção Literária 2001" com o livro de contos "Dezembro indigesto”.

Organizou também várias antologias, entre elas: Poetas Mineiros em Brasília e Antologia do Conto Brasiliense.

 

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