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RESENHAS
Pedras soltas
Peter O´Sagae*
Quando chega em casa o livro mais recente de Eloí num envelope desenhado a letra miúda, anuncio aos quatros ventos que eles podem, enfim, sentar-se à mesa. Sou daqueles indivíduos que tem por hábito comer livros e começo passando os dedos em cada dedicatória que me é dada a fim de conferir o relevo em tinta dourada.
Atrás de cada página virada, componho minha história de leitura num ritmo senza parole, cadência de pausas no olhar. Porque conheço Eloí desde o tempo em que se guardava sol com folhas de embira e o seu nome contava dezenove letras; foi depois, quase agora, que apareceu mais um E de permeio (e, falando nelE, ainda não lhe perguntei a natureza, se dado por correção, donde se escorreu). Deixa estar, tipografia.
Sei apenas que o desconhecido é calmo e pingou algumas gotas de bálsamo no meu café.
Naquele tempo de agora-menos-oito-anos, ela inventava poetar para crianças e seria desatino, seria ousadia, fazer artes com a mesma seiva que plantou Cecília, Elias, Paulo Paes, nas letras brasileiras. Mas seus versos tinham gosto de memória afetiva, de gritar palavras pra dentro do poço pra ouvir o eco. Só sei que escutei, bem antes da trombeta derradeira, o rumor que ali verdejava de alecrim. Lá foi uma, foram duas, três cartas pelas madrugadas e encostas virtuais e, então, já éramos amigos de porta e janela. E Eloí virou madrinha de meus caminhos, como professor de literatura infantil, em sua própria terra: imaginava você viajando e te abençoava, imaginava você começando lá e te abençoava, tava o tempo todo com você, te desejando uma linda jornada! Creio que a tua jornada pelo grande oeste está só começando! Diria mais: a jornada em Santa Catarina.
Eloí foi certeira em seu bem-querer e, entre uma viagem e outra,fui casualmente presenteado por Thaís de Almeida Dias (que havia sido minha chefia, nos anos da Rádio Cultura FM, e fora morar em Treze Tílias) com três recortes de jornal: era Eloí cronicando bromélias, assentamentos e bules. Discreta sempre, secreta e serena, nada me contara!
Somente as horas ímpares, que seus textos transpunham à realidade, atenuavam a breve traição. Quando chegares, recolhe pra mim a lenha seca, imagino ouvir seu manso jeito capitu de todas as vezes quando arremesso uma pergunta escrutinadora,que vou ali no pé do mundo e já volto.
Tem sequilhos pro teu café no guarda-louça.
São estes improvisos inesperados que reverberam dentro da gente. As crônicas — velhas crônicas — publicadas no jornal A Notícia, entre 1998 e 2001, então reunidas por Pedras soltas, tem feitio para amansar a adversidade com toques e sotaques de lirismo fantástico. São composições em marcha de desalinho, porém nem mesmo o espaço pouco da lauda e meia fora capaz de reduzir as virações de Eloí. Como registro dos fatos cotidianos e de reminiscências, vividas ou inventadas, é a autora quem aponta o dedo arguto contrário às modas e aos vendilhões. Mas, declarando-se para indefinidos fins, a cronista abre um rastro de espelho partido em mil pedaços e identidades. Cria narradoras — que o gênero diário parecia desconhecer — numa altiva recorrência de vozes, timbradas por veludo e vingança, poeticamente articuladas.
Hoje, perfiladas em conjunto, as crônicas mostram seu bordado: não vem à toa nenhuma frase, por mais travestida de non-sense que se pareça; a linha evola da referência local e da prisão do tempo. São como mimos de coral, ou riscos de groselha, em que o precioso e o efêmero provocam espanto.
Deixe de lado o que eu disse; o que importa mesmo é que cavei um túnel que vai dar numa cantiga luminosa. Você pode vir comigo, se quiser; eu quero que você venha.
Acompanhar os passos, as transfigurações dessa autora que se esconde na toca da onça, é para mim privilégio.
Três livros de poemas para crianças, um abraço mágico para a reflexão, duas aventuras de uma bruxinha e a terceira lengalenga dela que está por vir, uma novela em trânsito... Prêmios que chegam, Boi-de-mamão (1999), Leia Comigo FNLIJ (2002), Casa de Cultura Mário Quintana (2005) e Literatura para Todos (2006), mais as indicações no último Catálogo de Bolonha e, entre seis escritores brasileiros, para o White Ravens (Alemanha). As crônicas chegam com atraso, parece que foi tudo ontem... No avarandado de sua cozinha foi onde ouvi “As oito moças”, tanto quanto eu queria ouvir, e foram as primeiras vinte e ininterruptas horas de conversa com Eloí. O encontro virou palavra, “Dentro do caroço” e hoje me é restituído um fragmento, guardado em livro. Em que momento minha amiga piscou para dentro de si? Não sei.
Sobre o Autor
Peter O´Sagae:
Mestre e Doutorando em Letras, pela Universidade São Paulo, e editor da revista eletrônica Dobras da Leitura, que em março de 2006 foi reconhecida como uma ação homologada pelo Plano Nacional do Livro e Leitura - PNLL, Eixo 3.3 - Valorização da Leitura e Comunicação.
Trabalha como leitor crítico na avaliação de originais para duas editoras em São Paulo e na orientação literária junto a escritores, além de prestar assessoria técnico-acadêmica em projetos na área do livro e leitura.
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