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A comunhão da palavra

Whisner Fraga*

Avalizada por Dom Pedro II e idealizada pelo engenheiro italiano Giovani Rossi, a colônia anarquista Cecília, instaurada no final do século dezenove no Paraná, logrou se tornar um microcosmo para o estudo das utopias socialistas que pululavam entre os jovens e sonhadores europeus daquela época. Em pouco tempo malograda, a experiência jamais foi esquecida, tornando-se objeto de pesquisa de cientistas sociais, transformando-se em matéria de entusiasmadas teses universitárias e por fim assunto de um bom romance de Miguel Sanches Neto, lançado há pouco pela Editora Record.

Não há que se argumentar que escrever um obra de ficção baseada em fatos históricos seja tarefa fácil, uma vez que a matéria-prima se encontra à disposição de qualquer um, bastando ao escritor formatá-la, para que se torne uma boa história. Também se encontram em qualquer casa de materiais de construção o cimento, a areia e o tijolo, entretanto poucos extraem da mistura dessas matérias uma bela mansão.

Um amor anarquista retrata a imigração de italianos, capitaneada por Giovani Rossi, sua instalação em terras paranaenses, com a ajuda dos brasileiros, a criação de uma fazenda anarquista e finalmente o dia-a-dia desta sociedade.

A discussão sobre a qualidade de um romance histórico recai em dois casos fundamentais: o primeiro, no qual o escritor relata fielmente os dados históricos e corre o risco de escrever um livro de história, mesmo que seja um livro de história de leitura fluente. Por outro lado, ao criar uma obra ficcional que é bem de longe baseada em fatos históricos, pode ser acusado de deturpar o próprio passado. Acusação que de certa forma não procede, já que a intenção é conceber uma obra de ficção, portanto livre de quaisquer receitas que possam limitá-la.

Miguel Sanches prefere, em seu amor anarquista, a segunda opção. Com liberdade para desenvolver um tema a partir de uma aprofundada pesquisa, o escritor paranaense apresenta um romance em que a colônia Cecília é apenas um pano de fundo para o encabulado caso de amor entre Giovani e Adele, dividido com Gelèac e Aníbal. Os problemas da vida em comunidade parecem ter seu germe nesse quadrado amoroso, personificação do mais precioso ideal anarquista, segundo Sanches: o amor livre.

Miguel reduz seu romance a um mero jogo de intrigas amorosas, que por um acaso tem como palco uma fazenda socialista do século dezenove. Todo o problema do plantio, da colheita, da alimentação, da partilha, é discutido em termos da falta de carinho ou, como está no livro, da necessidade de sexo. Pode-se interpretar essa simplificação como uma ironia do autor, entretanto ela não deixa de ser reducionista. Neste sentido, deve se tornar em breve mais uma minissérie da Globo, que saberá subtrair o lirismo do livro para inserir, em seu lugar, muita sacanagem, travestida com um suntuoso aparato cênico para retratar a época em que a história acontece.

Nesta súcia de camponeses, os diálogos aparecem deslocados para bocas que não casam com as das personagens. Assim é que um chucro (italiano, é bem verdade) conversa no mesmo nível com um engenheiro. Será que todos os imigrantes eram tão letrados assim? Mais: todos falam da mesma maneira. Talvez tivessem decorado a obra Il Commune in Riva al Maré, de Giovani Rossi, e não soubessem se expressar de forma distinta.

Em meio a tantas personagens, todas sofridas e paradoxalmente espertas, prontas para tirar vantagem de qualquer situação, destaca-se a prostituta Maria Malacarne, típica profissional que gosta do que faz, personagem fundamental para a perpetuação da instituição familiar na colônia. Se enquanto ela não morava na comunidade os homens trabalhavam pouco alegando falta de carinho, com sua chegada o motivo do ócio se tornou o excesso de atenção feminina. De um jeito ou de outro essa insatisfação somente reflete o descontentamento do homem diante de qualquer regime político que não lhe dá condições mínimas de sobrevivência.

Miguel Sanches Neto, respeitado crítico literário, ao embrenhar-se pelo universo ficcional trouxe consigo uma consistente formação teórica, mas em Um amor anarquista não soube evitar alguns erros que tanto criticou em seus ensaios.

(Esta resenha foi publicada no jornal Estado de Minas, no caderno Pensardia 22 de outubro.)

Sobre o Autor

Whisner Fraga: Escritor, autor de Inventário do desassossego. Detentor de vários prêmios literários, dentre eles Segundo Lugar no Primeiro Concurso Internacional da Sociedade de Cultura Latina no Brasil, Terceiro Lugar no Primeiro Prêmio Missões, categoria Conto e Segundo Lugar no Com. de Contos de São Paulo. Organizador de antologias, publicou duas, "Encontros", de contos e "Literatura do Século XXI", de poesias. Teatrólogo, é autor da peça "Biografia de um dia só", um monólogo intimista.

 

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