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RESENHAS

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Memórias de sobreviventes

Ronaldo Cagiano*

Ao lado do baiano Antônio Tôrres, o mineiro Roniwalter Jatobá (Campanário, 1949), vem integra vertente da ficção brasileira que tem mapeado, sem cacoetes e com uma dicção muito peculiar, a vida de seres marginalizados. Dão voz a essas criaturas que saem do interior, ora acossadas pela seca e pela miséria, ora empurradas pela falta de perspectivas, e vão para os grandes centros na esperança de mudar de vida e buscarem sua parcela mínima de felicidade.

Esse contingente chegou às grandes cidades em busca de trabalho e oportunidades, ajudando a consolidar um fenômeno crucial nas últimas seis décadas: o deslocamento do eixo de sustentação econômica do país, ontem uma economia de vocação agrária, hoje uma opção industrial e urbana, que desaguou, inevitavelmente, na concentração populacional no Sudeste e na explosão demográfica das grandes metrópoles. Esse modelo, ao privilegiar a industrialização, acabou por absorver uma massa de trabalhadores vindas do interior, na maioria das vezes sem qualificação, mas que foi fundamental para atender a esse boom econômico. Grande parte oriunda do agreste, empurrada para uma realidade hostil, essa mão-de-obra incipiente delineou uma nova geografia humana e social, dando lugar a favelas, cortiços, miserabilizando a periferia e muitas vezes forjando o banditismo e o crime, quando excluídos das oportunidades a que visavam.

Paragens é o retrato desse mundo. Reúne duas novelas já publicadas, Pássaro selvagem e Tiziu e uma inédita, que dá título ao livro e que nos remete a uma gente excluída, condenada a êxodos permanentes e que tenta sobreviver à própria luta.

Jatobá vive em São Paulo desde 1970 e nesse período fez de tudo: ajudante de caminhoneiro, empregado de armazém e operário, antes de formar-se em jornalismo (época em que trabalhava na revista Abril) e depois funcionário da Eletropaulo, onde aposentou-se. Como um daqueles trabalhadores que chegam para a grande epopéia de uma cidade em permanente expansão, é na condição de migrante que conheceu bem essa dura realidade. E écom sutileza e habilidade, que vem escrevendo sobre ela, a partir da experiência pessoal e da vida difícil dos exilados nas grandes metrópoles, resgatando-os numa prosa cuja linguagem émarcada pela sensibilidade. Sem caricaturas ou remorsos, mas com um sopro humanístico e senso de reflexão sobre o nosso próprio destino, instiga o leitor a um profundo mergulho em nossas raízes proletárias, que constituem a base de nossa recente formação social e política.

Estreou em 1976 com as crônicas de Sabor de química, livro que retrata a vida dos nordestinos na Paulicéia e ABC, seguindo-se Crônicas da vida operária (1978), Viagem à montanha azul (1982), Amor à brasileira (1987), Contralamúria (1994), O pavão misterioso (1998), além de organizar as coletâneas Trabalhadores do Brasil histórias do povo brasileiro (1998) e Com palmos medida(1999) e uma novela histórica, O jovem Che Guevara (2004).

Seus protagonistas vivem tempos duros, de busca de um lugar ao sol, de renúncia ao torrão natal, de abandono compulsório das relações familiares, da solidão e da distância das origens e sentimentos, pois ambientam-se num frenético e ambicioso caldeirão urbano, onde pululam desejos de realização, de superação de obstáculos para se dar vazão a esperanças e sonhos, muitas vezes malogrados. O autor incorpora bem a psicologia desses seres transplantados, violentados por uma outra paisagem e um outro sentido imposto às suas vidas, estas que vão se transformando tanto pela necessidade de sobrevivência quanto pelo escalonamento de valores que acumulam outras ambições e desejos.

A reunião de três novelas em seu novo livro perfazem uma unidade temática, pois tanto Paragens, quanto Tiziu (1994) e Pássaro selvagem (1985) retratam mobilidade geográfica do retirante que sai do Nordeste em busca de outro mundo, enfrentando todo tipo de obstáculo para mudar o seu destino.

Pássaro selvagem espelha a vida de Jacinto, que vai de cidade em cidade, mudando de profissão, até a fatalidade de assassinar um desafeto. É a história de um homem diluído, desiludido e despossuído, com seus vínculos familiares, territoriais e afetivos rompidos. Nessa época, vê surgir uma estrada que estava sendo asfaltada, a Rio-Bahia, e que representaria uma via onde desaguaria outros migrantes como ele, mas que ele não quer compartilhar, preferindo o sentido contrário, fugir para a Amazônia, longe das perseguições e tensões que o aguardariam.

Já em Paragens, a rotina de um trabalhador que retoma seu vínculo funcional, depois de peregrinar por Bananeiras. Ao retornar a São Paulo num dia chuvoso e nostálgico, toma a linha do metrô, e entre a fadiga e a desilusão, irrompe um dilúvio de lembranças, tão antigas quanto novas, de pessoas, dramas e acontecimentos que marcaram sua vida. Nessa noite caudalosa dentro de si, vem à tona tudo o que presenciou em quarenta anos, quando percebe que não hámais rumo, não há paragens, não há um final feliz, pois, como ele mesmo sentencia, sigo calado, molhado, bestando.

Tiziu revive a volta melancólica de Agostinho para Bananeiras, depois de anos de sofrimento, nenhum patrimônio e um acidente de trabalho que lhe custou uma mão. A singela analogia com o pássaro, na verdade metaforiza as revoadas que esses homens vivem fazendo em suas vidas, até o momento em que decidem voltar, porque não há mais colocação, nem lugar, nem destino, porque tudo se exauriu, tudo é impossibilidade, paradoxo e sofrimento. Eis o quadro que compõe as grandes cidades, de gente que, como cavalos, carrega a economia nas costas e que, ao final, têm como saldo a única parte que lhe cabe nesse latifúndio urbano e desumano: a solidão ou a morte, sobreviventes da perda da utopia de que dias melhores virão.

Paragens é composto de narrativas ao mesmo tempo pungentes e poéticas, reforçando aquela premissa de que nos fala Paul Auster, que deve nortear o trabalho de qualquer autor comprometido com a verdade: Um escritor só pode ser bom se tiver a honestidade de ir ao fundo, ao céu, ao inferno, doa o que doer. Roniwalter Jatobá está entre aqueles que não fazem literatura por mero deleite ou desejo de figuração, mas com a responsabilidade ética e estética de provocar, de gerar inquietação, de dar um soco no estômago, de nos indignar, pois assim, comunicando um mundo onde pulsam o homem e sua vida, ajuda-nos a compreender o tempo em que vivemos.

Sobre o Autor

Ronaldo Cagiano: De Cataguases, cidade mineira berço de tradições culturais e importantes movimentos estéticos, surgiu Ronaldo Cagiano. É funcionário da CAIXA. Colabora em diversos jornais do Brasil e exterior, publicando artigos, ensaios, crítica literária, poesia e contos, tendo sido premiado em alguns certames literários. Participa de diversas antologias nacionais e estrangeiras. Publica resenhas no Jornal da Tarde (SP), Hoje em Dia (BH), Jornal de Brasília e Correio Braziliense, dentre outros. Tem poemas publicados na revista CULT e em outros suplementos. Obteve 1º lugar no concurso "Bolsa Brasília de Produção Literária 2001" com o livro de contos "Dezembro indigesto”.

Organizou também várias antologias, entre elas: Poetas Mineiros em Brasília e Antologia do Conto Brasiliense.

 

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