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O purgatório da história

Menalton Braff*

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA


A história é personagem coadjuvante na literatura brasileira. Pode-se dar exemplos contrários, desde clássicos como "A Retirada da Laguna", de Taunay, e "Os Sertões", de Euclydes da Cunha, até "Guerra em Surdina", de Boris Schnaiderman -que tratam, respectivamente, da Guerra do Paraguai, da revolta de Canudos e da Segunda Guerra Mundial. Há, entretanto, uma disparidade entre a extensão do trauma provocado por certos eventos e a raridade de sua representação ficcional.

Basta citar o neo-realismo italiano, a literatura alemã do pós-guerra ou a ficção argentina (catalisada pelo horror do regime militar) para perceber, por contraste, que no Brasil as narrativas privilegiam ora o efeito social das fraturas históricas (como no romance regionalista), ora uma leitura alegórica de nossa alternância entre arcaísmo e modernização autoritária (como "Sargento Getúlio" e "Viva o Povo Brasileiro", de João Ubaldo Ribeiro, ou "Zero", de Ignácio de Loyola Brandão).

Não vai aqui qualquer juízo de valor. Como disse o argentino Ricardo Piglia (autor de "Respiração Artificial"), "a história não expressa nenhuma sociedade, a não ser como negação e contra-realidade; a literatura é sempre inatual, diz em outro lugar, fora de hora, a verdadeira história".

Coincidência ou não, o fato é que, num momento em que são lembrados os 40 anos do golpe de 64, surgem três romances que têm como epicentro os anos de chumbo: "O Fantasma de Luis Buñuel", de Maria José Silveira, "Não Falei", de Beatriz Bracher -obras que tive a oportunidade de comentar nesta coluna "Rodapé"- , e "Na Teia do Sol", do gaúcho Menalton Braff.

Dentre eles, o livro de Braff é o mais elaborado formalmente. Seus capítulos são jorros verbais em que o protagonista descreve de modo obsessivo, às vezes alucinado, uma situação de isolamento extremo, desencadeada pela perseguição política.

Os dados factuais vão aparecendo de modo fragmentário, como lembranças que irrompem num pesadelo: aluno de filosofia que se envolveu em protestos estudantis, André (codinome Tito) é obrigado a entrar na clandestinidade. Depois de passar alguns dias num "aparelho", refugia-se numa chácara, onde recebe semanalmente a visita de um velho militante disfarçado de verdureiro (seu contato com o mundo exterior).

A prisão durante uma manifestação, informações sobre companheiros desaparecidos e o rosto de torturadores se misturam com memórias da namorada, de amigos de infância, do tio-avô que caçava gambás com a ajuda de um cão muito parecido com Barão -vira-lata que é sua única companhia e que o alerta para as visitas indesejadas.

O espaço ficcional de "Na Teia do Sol" é a tela mental em que se cruzam tempos diversos, por meio de frases elípticas, nas quais os verbos são muitas vezes omitidos para ressaltar um fluxo de pensamento atravessado pelo "Sol vermelho" que calcina o "eremitério" de André e que se funde com o gás lacrimogêneo das forças militares.

Enquanto está "apodrecendo entre canteiros de repolhos e nuvens de pernilongos", enquanto risca seu "calendário de calabouço" como um Robinson Crusoé ilhado pela repressão, o herói de Braff vai lendo os poucos livros que lhe caem do céu.

Há um sutil jogo intertextual, que nunca resvala no artificialismo (ao contrário dos momentos de indignação panfletária). Num capítulo, a comparação de Barão com a cachorra Baleia, de Graciliano Ramos, leva à descrição de como suas mãos se "desumanizam" no trabalho com a terra, em paralelo com as "Vidas Secas" do escritor alagoano.

E as referências a Proust dão o verdadeiro tema do livro: "Escoando, o tempo é a medida da vida, só que a contagem da vida é regressiva, contada pelo que já se perdeu, quando passa assim no oco escuro do nada".

Ao final, quando recebe dos companheiros uma edição da "Divina Comédia" (sinal de que terá de permanecer em seu refúgio), o narrador de Braff sugere que, no purgatório da história, a luta por uma liberdade tornada abstrata tem como preço aquilo que deixou de ser vivido.

Sobre o Autor

Menalton Braff: Professor, contista e romancista, Menalton João Braff nasceu em Taquara/RS, de onde saiu muito cedo para cumprir um itinerário nem sempre prazeroso por este mundo de Deus. Abandona o pseudônimo de Salvador dos Passos com a publicação de À Sombra do Cipreste, livro com que ganhou o Prêmio Jabuti 2000. Em novembro de 2000 lança o romance "Que Enchente me Carrega?". Seu mais recente romance é Castelos de Papel.

 

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