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Capoeira Escrava

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Flagelo da ordem policial, terror das "boas famílias" da capital do Império, a capoeira, no Rio de Janeiro da primeira metade do século XIX, representou um desafio permanente para a ordem escravista urbana. Formada em sua maioria por jovens escravos da África Centro-Ocidental, a partir de 1821 entrou em fase de extrema politização, processo que culminou com as rebeliões de 1828 e 1831. Esse processo atingiu o ápice com a chegada ao Rio dos minasnagôs vindos da Bahia, que ocasionaram profundas mudanças políticas e culturais naquela que era a mais importante tradição rebelde dos escravos urbanos do Rio de Janeiro imperial. Este livro narra a fascinante saga da capoeira escrava, que deitou profundas raízes na cultura popular na cidade do Rio e imprimiu marcas indeléveis na nossa identidade como nação.

Carlos Eugênio Líbano Soares já escreveu um verdadeiro clássico sobre a capoeira carioca na segunda metade do século XIX, o premiado A negregada instituição: os capoeiras na Corte Imperial, 1850-1890. Agora ele recua a primeira metade do século para aprofundar seu estudo sobre o assunto e acrescentar outras manifestações de rebeldia escrava, também no Rio, fazendo desfilar diante do leitor documentos inéditos e surpreendentes que descobriu nos diversos arquivos em que pesquisou. Mas o autor não mantém uma relação passiva diante das fontes. Ele as interroga com estilo de detetive bem treinado e criativo, como deve ser o bom historiador. O resultado é uma história envolvente, feita de muitas pequenas e significativas histórias vividas na dor por escravos que, no entanto, não desistiram de afirmar através de muitos meios sua vontade e, assim, sua humanidade.

João José Reis
Departamento de História - UFBA


PREFÁCIO

Quando comecei a pesquisa para o meu Slave life in Rio de Janeiro, 1808-1850, em 1968, eu não sabia nada sobre a capoeira. Diferentemente dos jovens americanos de hoje, que podem estudar ou aprender sobre ela com um mestre brasileiro, eu tive de descobrir a capoeira sozinha, nos arquivos do Rio. Como estrangeira, levei muitos anos para encontrar informações suficientes sobre a capoeira no século XIX, de modo que pudesse descrevê-la brevemente em Slave life. Jamais imaginei que um livro inteiro seria escrito sobre a evolução histórica da capoeira no Rio no princípio do século XIX e que a pessoa que conseguiria fazer isso seria Carlos Eugênio Líbano Soares. Ele também havia escrito sobre a capoeira depois de 1850, em seu livro A negregada instituição: os capoeiras na Corte imperial 1850-1890.

Carlos Eugênio partiu do meu livro e de outras descrições superficiais da capoeira naquele período e ultrapassou-as. Durante a pesquisa intensiva para sua tese de doutorado - que incluiu uma visita no Arquivo Histórico de Angola, em 1995 -, ele descobriu novas fontes arquivísticas sobre a capoeira, especialmente os registros de Polícia e de prisão, que eram desconhecidas para mim, Thomas Holloway ou outros especialistas. A capoeira escrava é solidamente baseado em fontes de arquivo, incluindo os registros policiais. Ele não repete meramente os mitos usuais sobre a capoeira, mas acrescenta novas descobertas ao corpo do nosso conhecimento histórico sobre essa dança e arte marcial nos princípios do século XIX.

Nos capítulos iniciais, Soares examina o papel dos africanos novos na evolução da capoeira. Seu estudo sobre os africanos presos por capoeira revela que a maior parte deles era constituída de homens jovens da África Centro-Ocidental, isto é, Angola, Congo e Cabinda. Ele rastreia sua presença na cidade pelos bairros e demonstra e evolução de uma cultura de cores, especialmente o amarelo e o vermelho, nos barretes e nas fitas usados pelos presos por capoeiragem. Encontramos jovens capoeiras em gangues precoces, que deram origem às maltas no século XIX, e observamos a evolução de seus costumes e conflitos com a Polícia. Soares descreve seu papel na resistência escrava e no desafio à Polícia em práticas como a de escalar as torres da igreja e tocar os sinos com o próprio corpo. À medida que mais africanos eram importados para o Rio, eles cresciam em força e desafiavam os senhores de escravos e a Polícia, especialmente nos turbulentos anos de 1840. Uma das grandes forças de A capoeira escrava é que Soares pôde documentar a progressiva evolução da capoeira em seu contexto político e cultural, incluindo o papel dos capoeiras nos movimentos políticos e a repressão à revolta dos mercenários estrangeiros em 1828, e nos conflitos de rua. Ele argumenta convincentemente que o desafio da capoeira à escravocracia não era mera paranóia da parte dos senhores, mas uma realidade constante.

A resistência e a construção de comunidade são um lado do uso habilidoso que Soares faz dos arquivos de Polícia. Outro lado é o quadro que le pinta do controle social e policial, especialmente do papel do chefe de Polícia Eusébio de Queirós, que nunca subestimou seus oponentes. Ele não apenas explora a ideologia da repressão implementada por Eusébio e outros chefes de Polícia, mas também documenta o alto preço pago pelos capoeiras - ao menos 300 chibatadas a partir de 1818 - por sua corajosa resistência à escravidão. Soares leva o leitor para dentro das aterrorizantes cadeias que aprisionavam os capoeiras e outros escravos que desafiavam a ordem escravista, onde se misturavam aos prisioneiros políticos da revolta de Cabanagem, no Pará (para grande temor do chefe de Polícia, que temia que estes espalhassem sua idéias perigosas entre os escravos capoeiras). Suas descrições do tratamento cruel infligido aos prisioneiros do Arsenal de marinha, que trabalhavam no Dique da ilha das Cobras, acrescentam um novo capítulo ao nosso entendimento do controle social na sociedade escravista.

Em acréscimo as suas outras contribuições, Soares confronta-se com os debates históricos sobre as origens da capoeira na África e no Brasil. Chegando a suas conclusões, ele explora as danças e artes marciais encontradas em outros lugares das Américas, assim como em Angola. Soares sustenta de modo convincente as evidências de que centro-africanos da região do baixo Zaire, residentes na cidade do Rio de Janeiro, desempenharam um papel fundamental no desenvolvimento da capoeira. Mas também observa, por outro lado, que a capoeira teve muitos pais.

É uma honra e uma satisfação recomendar A capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1850-1890) ao leitor, como uma contribuição indispensável par os estudos da diáspora africana. Entretanto, mais que isso, o leitor irá entrar no drama da guerra entre os escravos e a Polícia, travada nas ruas do Rio de Janeiro em princípios do século XIX. Quem ganhou? Quem perdeu? Talvez a resposta venha apenas no futuro, à medida que a cultura brasileira entre no mercado global. O que apreciamos hoje, mesmo de uma distância como a que separa Rio de Detroit (Michigan), são a graça e a habilidade da dança e da arte marcial. Para além de seu sofrimento e resistência, os escravos do Rio forjaram uma extraordinária tradição cultural que merece ser estudada pelos historiadores, e Carlos Eugênio Líbano Soares escreveu um livro importante que ilumina a natureza de sua luta, assim como a força dos seus inimigos. Já não poderemos olhar a capoeira no século XIX como mero folclore.

Mary C. Karasch
Rochester (Michigan)
13 de Agosto de 1999.

Sobre o Autor

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