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RESENHAS
Entre o real e o imaginário
Ronaldo Cagiano*
Quase três décadas após a publicação de "Zero versus" (Esdeva, 1976), Márcia Carrano comparece com uma safra ficcional, em textos que guardam o mesmo cuidado com a forma percebido em seus poemas contidos e depurados. Com "Porção de tintas" (Edições Funalfa/Lei Murilo Mendes, 196 pgs., 2003, R$ 25) a autora aprimora seu rigor criativo na confecção desses contos, ao mapear um outro território, delineado pelo mistério, numa perspectiva que representa um mergulho nos signos existenciais.
O livro tanto hierarquiza a pureza da linguagem, quanto instaura uma certa metáfora do estranhamento individual e/ou coletivo, porque reproduz, como num jogo de espelhos - não obstante a simplicidade narrativa, a poesia e a fina conceitualidade dos temas - o homem em suas múltiplas fantasias, em seus delírios e suas emoções. A autora vai desfiando um novelo narrativo permeado de surpresas estilísticas, descortinando histórias que oscilam entre o real e o fantástico, entre a normalidade e o absurdo, como a revelar o insondável da alma humana.
Os protagonistas e as histórias de "Porção de tintas" deambulam numa atmosfera carregada (não de tintas, como sugere o título) de ironia e humor, mas sem comprometer a versatilidade e o equilíbrio da autora, que sabe fazer a ponte entre duas margens: o real e o imaginário. Márcia Carrano, foi professora de português e literatura em Cataguases, onde nas décadas de 60 e 70 atuou em movimentos literários ao lado de Joaquim Branco, Ronaldo Werneck, Carlos Sérgio Bitencourt e P. J. Ribeiro, editores dos antológicos suplementos literários S.L.D. e Totem; atualmente radicada em Juiz de Fora, é perita na linguagem, sabe manipular a palavra e dela extrair toda sua riqueza semântica, explorando todas as possibilidades da comunicação, todo o processo cognitivo que aproveita a signagem do texto e expõe um mundo de
variado matiz.
Quem são os personagens nessas histórias de Márcia Carrano? - São seres ensimesmados em suas teias psicológicas, gente que procura reconhecer-se no absurdo, protagonistas de um universo que, muitas vezes, destoa dos padrões sociais e aprofunda as dificuldades de inserção nos patamares da "normalidade", por isso vivem achacados, nos cantos, sem encaixe no quotidiano, arremetendo-se para o terreno das verossimilhanças.
Os personagens e as histórias têm particularidades e nomes inusitados - Oçoapa, Gravataldo, Miba, Lisadio, Defensaldo, Concordina etc - numa clara alusão a uma realidade que transcende o real (o trans-real, na acepção da profª Leila Maria Fonseca Barbosa, da UFJF/UFRJ, que ao apresentar a obra, vislumbrou, também, características rosianas em seu texto, pela alta carga de invenção e criatividade) e se manifesta como expansão das fronteiras do sonho, nas quais a autora capta tanto os segredos do processo de elaboração como os abismos da alma humana. Exemplo desse trânsito onírico é o conto que dá título ao livro, ao particularizar o absurdo e universalizar o sentido de estranheza das re(l)ações sociais, permeada de sutilezas e ambigüidades.
Com "Porção de tintas", Márcia Carrano ultrapassa os territórios convencionais da linguagem, despista os cânones, renuncia ao discurso literário e politicamente correto e abstraindo-se da retórica linear e previsível, manifesta um novo e agudo olhar sobre a nossa condição.
Sobre o Autor
Ronaldo Cagiano:
De Cataguases, cidade mineira berço de tradições culturais e importantes movimentos estéticos, surgiu Ronaldo Cagiano. É funcionário da CAIXA. Colabora em diversos jornais do Brasil e exterior, publicando artigos, ensaios, crítica literária, poesia e contos, tendo sido premiado em alguns certames literários. Participa de diversas antologias nacionais e estrangeiras. Publica resenhas no Jornal da Tarde (SP), Hoje em Dia (BH), Jornal de Brasília e Correio Braziliense, dentre outros. Tem poemas publicados na revista CULT e em outros suplementos. Obteve 1º lugar no concurso "Bolsa Brasília de Produção Literária 2001" com o livro de contos "Dezembro indigesto”.
Organizou também várias antologias, entre elas: Poetas Mineiros em Brasília e Antologia do Conto Brasiliense.
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