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A microantologia de Marcelino Freire

Jacinto Guerra*

"Não tenho tempo para ler" é o que todo mundo diz Brasil afora, esquecendo-se que tempo, na maioria das vezes, é uma questão de preferência. Na verdade, a história de que brasileiro não lê é, também, uma espécie de conversa fiada. Coisa que não assusta um escritor cabra da peste, como Marcelino Freire, que não costuma pedir licença para ocupar espaço nas feiras e supermercados da literatura.

Por outro lado, Drummond defendia que "escrever é cortar palavras", enquanto Hemingway recomendava: "Corte o resto e fique no essencial". Criativo e ousado, Marcelino Freire, 34 anos - nordestino da pequena cidade de Sertânia, Pernambuco - resolveu aceitar o conselho dos mestres, tanto do poeta universal de Itabira como do grande romancista de 0 velho e o mar.

Um guerrilheiro da literatura, como ele próprio diz - que morou em Paulo Afonso, na Bahia, e, ainda criança, foi para o Recife -, Marcelino é morador de São Paulo, onde escreve e edita seus livros que, aliás, começam a ter um merecido sucesso. Escritor independente, conseguiu despertar a atenção, não apenas do público e da crítica, mas também, de alguns editores. Convidado por Nelson de Oliveira, participou da antologia "Geração 90 - Manuscritos de Computador" (Boitempo Editorial - 2001), que a editora afirma reunir os "melhores contistas surgidos na última década do século XX".

Em 2002, Freire lançou a "Coleção 5 Minutinhos", de microtextos para serem lidos enquanto a dona-de-casa está com as panelas no fogo ou o cidadão aguarda sua vez numa fila de espera, por menor que seja.

Inspirado na falta de tempo dos leitores, nos conselhos dos grandes mestres e, principalmente, na antologia "Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século", de Italo Moriconi, publicada pela Objetiva, Marcelino resolveu organizar "0s Cem Menores Contos Brasileiros do Século", que tem como epígrafe um versículo do evangelista João: "No princípio era o Verbo". Depois do microtexto da Bíblia, vem o mini-conto mais famoso do mundo, de autoria do guatemalteco Augusto Monterroso: "Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá". Com menos de quarenta letras, o escritor contou uma história capaz de provocar interpretações de significados diversos. Com esse mote, Marcelino Freire resolveu desafiar cem escritores brasileiros a lhe enviar cem histórias inéditas de até cinqüenta letras, sem contar o título e a pontuação.

O desafio foi aceito e veio a lume "Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século" (Ateliê Editorial, 2004), com prefácio do Italo Moricori, organizador de "Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século", aliás, um micro-prefácio de oito linhas, convidando o leitor para divertir-se com o livrinho de 100 páginas que são "pílulas ficcionais e das melhores".

Como o organizador da antologia propôs aos escritores que cada texto teria, no máximo, cinqüenta letras, sem contar o título e a pontuação, o Millôr Fernandes, com sua verve carioca, escreveu um mini-conto com título enorme e uma história de pouquíssimas palavras, narrando as aventuras de turista inglesa, na verdade, uma terrorista cubana que, nas águas do Caribe, estava sendo forçada, pelo comandante do navio, a conceder-lhe favores sexuais. Segue o miniconto, ficando o título para o leitor procurar na página 69, que vale a pena. O texto é a conversa da moça, reagindo ao assédio:

Comandante, tem que estuprar em ½ minuto; às 8, seu navio explode.


Comparando o volumoso Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa com um dinossauro, o escritor Joca Reiners Terron faz uma paródia com o famoso conto do guatemalteco Augusto Monterroso, escrevendo "O pesadelo de Houaiss":

Quando acordou, o dicionário ainda estava lá.

Alguns notáveis da literatura brasileira estão presentes no livro, como o paranaense Dalton Trevisan e o gaúcho Moacyr Scliar, além de Lygia Fagundes Telles, Adriana Falcão e João Gilberto Noll. Da nova geração de contistas mineiros, os leitores vão encontrar Carlos Herculano Lopes, Luiz Ruffato, Whisner Fraga e Ronaldo Cagiano, um nome, também, da moderna literatura de Brasília. De Campo Grande, Mato Grosso do Sul, o poeta Manoel de Barros vem com uma historinha de amor: Maria, quero caber todo em você. A pernambucana Adriene Myrtes fala da morte, com um delicado humorismo britânico: Caiu da escada e foi para o andar de cima. Enquanto isto, o gaúcho Henrique Schneider lembra do destino de um herói: Quando soltou os pulsos, o trem já estava em cima. Também do Rio Grande do Sul é o Jorge Furtado, com um mini-conto sem título, uma rápida conversa pelo telefone:

- Eu não te amo mais.
- O quê? Fale mais alto, a ligação está horrível.


O paulista Luiz Roberto Guedes, com seu "Boletim de Carnaval", conta uma conversa entre neta e avó:

- Fui estuprada, vó. Três animais!
- E tu esperava o quê? Um noivo?


Menalton Braff, outro paulista, prefere o fantástico, com um toque de beleza poética, que lembra o estilo de Mario Quintana:

Pegou o chapéu, embrulhou o sol,
então nunca mais amanheceu.


Escritor e agitador cultural, Marcelino Freire costuma aparecer de repente, para vender o seu peixe, nas Feiras e Bienais do Livro, como aconteceu na Jornada de Literatura, em Passo Fundo, no Rio Grande do Sul, e na sofisticada Festa Literária Internacional de Parati, dominada por europeus e norte-americanos. Em sua aventura literária, Marcelino já levou seus livros a outros países, especialmente Portugal e México.

Lançado em abril de 2004, com a façanha de já ter alcançado duas edições em três meses, "Os Menores Contos Brasileiros do Século" é um grande micro-livro para leitores que têm pouco tempo e sabem que, em literatura, muitas vezes, quanto menor melhor.

Como o autor lança um desafio para que os leitores escrevam um micro-conto, o cronista não deixou de atender e fez uma viagem literária rumo a Porto Seguro, nos começos do Brasil: "Terminada a leitura da carta que escreveu ao Rei D.Manuel, de Portugal, o cronista Pero Vaz de Caminha ficou tão entusiasmado que se imaginou, de fardão e tudo, tomando o chá das cinco na Academia Brasileira de Letras."

Sobre o Autor

Jacinto Guerra: JACINTO GUERRA, mineiro de Bom Despacho, é autor de ensaios e biografias como o JK-Triunfo e Exílio-Um estadista brasileiro em Portugal, além de outros livros, entre os quais O gato de Curitiba - crônicas de viagem e outras histórias, editados pela Thesaurus, em Brasília.

 

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