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RESENHAS
Pesadelos Verticais
Jorge Pieiro*
'Lacerar a carne do semelhante e ser lacerado tornou-se um verdadeiro pacto de sobrevivência'.
Paulo Sandrini, do conto 'Na manada, fora dela'
Paulo Sandrini, do conto 'Na manada, fora dela'
Os leitores temos a valiosa oportunidade de experimentar algumas sensações a partir da leitura de textos literários. Espanto, prazer, estranhamento, por exemplo, são algumas dessas sensações provocadas no leitor, que autorizam a atividade do escritor. Afinal, todos os leitores ansiamos não apenas por uma relação lúdica com o texto, mas por um (re)conhecimento da própria existência e seu arrebatamento. Os textos têm validade pelo que concentram de sabedoria, consubstanciação e insanidade.
Se, para Nietzsche, em Assim falava Zaratustra, 'as parábolas devem falar do tempo e do acontecer; devem ser um elogio e uma justificativa de tudo o que é perecível', pode ser que os leitores acabemos por entender, finalmente, que ser perecível é da nossa própria natureza, e que por isso o princípio do caos, do sujo, do nulo são a causa do desvelamento do que é sujeito no mundo.
O paulista Paulo Sandrini (1971), atualmente vivendo em Curitiba, reuniu dez contos, que são espécies de parábolas, alegorias ligadas a estranhas existências, ou, quem sabe, a uma desistência consciente da vida mal reciclada, que se faz presente na conformação das personagens que formam esse O estranho hábito de dormir em pé (Travessa dos Editores, 2003). Na obra, Sandrini repetiu o óbvio em entrelinhas, ou seja, que o homem é um animal político e carece de socialização; no entanto, ao fazê-lo, soube bem engendrar as tramas ao decidir por um gênero que permite as hesitações, os desvirtuamentos da realidade - o fantástico.
Da obra, registrem-se as ilustrações de Marco Sandrini, irmão do autor, que nos condena a concluir que somos corpos humanos com cabeças de animais ditos irracionais, revelando-nos mutantes que podem tanto simbolizar a relação entre o racional e o irracional, querendo ainda, talvez insinuar, que dessas cabeças, o inusitado, o inesperado é sempre humano, ou pelo contrário, desastroso, tanto faz.
Paulo Sandrini intercepta o caminho do leitor com uma barreira de metáforas e faz-nos estancar, amuados, perplexos diante delas, como se as apresentasse em forma de outras realidades cruas e naturais; mas ao erigi-las, estranhamente possíveis aos olhos comuns, desconcerta-nos e preenche-nos com momentos de fantasias e de pesadelos.
O conto de abertura da coletânea, 'Na manada, fora dela', fala de egoísmo, do oportunismo humano, de irracionalidade; contrapõe as relações do mundo econômico moderno: 'A ânsia dos do norte em se devorar em definitivo fora bem maior que a nossa, ao sul'; acentua a esterilidade prática do ser intelectual: 'à minha vida trancado entre os livros, devotando-me às causas intelectuais. Não sabia mesmo me virar muito bem como coisas de ordem prática'; avalia o perigo da crença em deus(es): 'ruim sem os deuses, pior com eles'; e, ainda, formula a grande metáfora da perda, em que a busca continua a ser o motivo da vida. Além das alegorias do texto, ainda uma crítica arrebatadora aos poderes instituídos ou simbólicos, como se a conduzir a um pensamento: vale por um nada viver, mas vale. Esse conto contém uma boa amostra dos artifícios estilísticos e retóricos utilizados ao longo da obra.
Retomando um estilo há muito cultuado, mesmo porque sob o sol tudo continua sem haver de novo, Sandrini não desaponta. Em linguagem culta, muito além do padrão simplista quase que invariavelmente presente nas narrativas desses tempos pós-modernos, o autor vai tramando histórias bem elaboradas, que se valem de uma consistente linha temática de cunho filosófico-existencial.
Na obra, três contos se comunicam, pela presença de um vocábulo em desuso - onagro -, quando se quer aludir a asno, muar, jumento, burro etc. Em 'Dr. Onagro', uma mutação inexplicável vai transformando o narrador em asno, que 'vai adquirindo o estranho hábito de dormir em pé'. Contraditoriamente, o asno torna-se muito mais humanizado. Mais onagros surgem em 'Um desvario humano no olhar', como artifício para denunciar a ganância humana, o descontentamento, a obsessiva e desenfreada escalada do progresso que só produz a perda da qualidade de vida. Ou, ainda, o quase invisível personagem Dr. Onagro (um outro), do conto 'Martelo de Thor', que quase destrói o sonho de paz de uma personagem da classe média, por prender grandes animais em casa de condomínio, tornando incômoda a vida dos vizinhos. Percebem-se, nos três contos, as metáforas da impossibilidade de se ter uma vida saudável, levando-nos a crer que o que vale mesmo é brutalizar-se, é recuperar a disposição 'para rugir na orelha' dos empregados e 'pespegar coices nos seus traseiros' por qualquer ínfimo motivo que seja.
Também a falta de diálogo, a mesquinharia, a constante mania humana pela irracionalidade aparecem no conto 'Sobre o inimigo: sobre nós mesmos'. Nele, as delações são forjadas para a melhoria do inimigo, que vive sob a custódia de um exército invasor. Aqui, as posições estão definidas, mas em seu avesso, pois o invasor é quem sofre. Ao final, sempre o imponderável: 'O problema foi que o comandante do nosso exército não falava sequer uma palavra de nossa língua. E os nossos soldados insistiam em deixar os portões da cidade escancarados'. Mas isso não é a nossa vida metaforizada?
Na obra, enfim, estão presentes a hesitação do gênero fantástico, o estranho e o maravilhoso, para retomar as categorias do hoje discutível, porém clássico estudo de Tzvetan Todorov, Introdução ao gênero fantástico. E, ainda, uma maneira possível de nos fazer, uma vez leitores, acordar de pesadelos; de fazer-nos enxergar o pouco que nos resta de humanidade e sobrevivência; como se do poema 'Horror simpático', das Flores do Mal, de Baudelaire, uns versos nos permitissem pensar assim do que foi lido nesses contos: 'São carros fúnebres dos sonhos, / Vosso clarão a sombra traz / Do inferno que à minha alma apraz'
Serviço:
O estranho hábito de dormir em pé - Contos de Paulo Sandrini. Travessa dos Editores, 2003 (www.travessadoseditores.com.br). 133 páginas. R$ 20,00
Sobre o Autor
Jorge Pieiro:
Jorge Pieiro é escritor e professor de literatura. Auto de várias obras:
• Caos Portátil (contos). Fortaleza: Letra & Música, 1999.
• Galeria de Murmúrios (ensaio). Fortaleza: [s/n], 1995. (Cadernos de Panaplo).
• Neverness (poema). Fortaleza: Resto do Mundo/Letra & Música, 1996.
• O Tange/dor (poemas). Fortaleza: [s/n], 1991.
• Fragmentos de Panaplo (contos breves). Fortaleza: [s/n], 1989.
• Ofícios de Desdita (ficção). Fortaleza: IOCE, 1987.
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