- Verdes Trigos
- Web Log
- Resenhas
- Livros
- Especiais
- Van Gogh
- Wheatmania
- Usabilidade
RESENHAS
Um tempo mítico
Miguel Sanches Neto*
Escrevendo segundo os princípios de um “realismo anímico”, derivação do “realismo mágico”, o moçambicano Mia Couto é hoje um dos maiores autores da língua portuguesa. Sua produção difere da dos latino-americanos por retratar um tempo único, sem a divisão entre mortos e vivos. A manifestação do sobrenatural não se dá como epifania, quebra de uma lógica, fazendo parte de uma tradição cíclica e mítica do tempo.
É essa a natureza de seu romance O Último Vôo do Flamingo, que se passa na vila de Tizangara, nos primeiros anos de pós-guerra, quando os ex-revolucionários, depois de expulsar os colonizadores, tornaram-se os novos algozes do povo. Nessa comunidade, dependente da ajuda internacional para financiar o fim das minas, ocorrem estranhas mortes – os soldados das Nações Unidas explodem, restando deles apenas o apêndice sexual, “avultado e avulso”. O esclarecimento desse mistério é o fio condutor da narrativa.
Com a incumbência de fazer um relatório da situação, chega o italiano Massimo Risi, que recebe do administrador local um tradutor. Detalhe – o italiano fala português, mas não compreende aquele mundo, servindo-se do intérprete mais como guia.
Num romance cheio de detalhes narrativos, com grande independência poética, é difícil eleger um centro. Pode-se dizer, no entanto, que este é a série de oposições: saber de fora vs. saber autóctone; exploração estrangeira vs. corrupção interna; tempo total vs. contemporâneo etc.
Risi, que chega como força civilizadora, com uma função meramente burocrática, se deixa, aos poucos, enredar pelos dramas dos moradores, penetrando nesse embaralhado temporal: apaixona-se por uma falsa velha que se comunica com os mortos. Essa duplicidade temporal da mulher vai se estender a toda a província, que vive paralelamente o tempo dos antepassados – época em que eram comuns os flamingos – e o presente, voltado para lucro.
O clima é de feitiçaria. As explosões ocorreriam, segundo essa ótica, após o encontro sexual dos homens com as mulheres e seriam um feitiço de Zeca Andorinho. Mas Risi, por ser um assinalado, adquire a imunidade e penetra no universo local, estabelecendo um contato físico/espiritual com a velha/jovem Temporina – nome simbólico, que a faz representante desse tempo denso.
Depois de percorrer o pequeno estrato social da província, constatando a decadência do revolucionário, entregue a interesses econômicos próprios e externos, Risi conquista uma cidadania africana. Diz o tradutor-narrador: “Senti o italiano como um irmão nascido na mesma terra” (pág. 220). No final, definitivamente preso a esse mundo nebuloso, ele faz um aviãozinho com o último relatório e o joga na escuridão – é o novo vôo (simbólico) do flamingo, agora movido por mão européia.
Na versão mágica, as explosões ocorrem por causa do aquecimento dos homens libidinosos. Mas há também uma explicação histórica – os comparsas do administrador corrupto recebem dinheiro para retirar as minas e depois, clandestinamente, as plantam de novo, para que nunca deixem de ser fonte de renda.
Se essa interpretação realista pode desfazer o clima mágico, o desfecho o restaura: Tizangara inteira desaparece, virando um imenso oco. Restam apenas Risi, o narrador e o pai deste – representante do tempo ancestral. O grande vazio é o fim da hegemonia terrena (racional) e o início do tempo espiritual dos mortos. É depois dessa experiência que o tradutor faz-se narrador póstumo (num pertencimento às duas dimensões).
Sem culpar apenas os estrangeiros, reconhecendo entre eles também o aliado, e distribuindo o quinhão de responsabilidade a todos os gananciosos africanos, Mia Couto faz uma crítica aos mercadores de misérias e guerras, unindo dois continentes, soldados pelo intruso que se tornou irmão.
Enquanto estilo, o livro também se destaca por um casamento de África e Europa. O português e os dialetos locais convivem em um texto em que a língua, tal como a realidade, cresce sempre para o inusitado. O autor cria neologismos, usa uma grande abertura poética, interfere nos ditados, tudo para ampliar o campo das significações. É a interferência de um olhar africano no código europeu, fundando na linguagem uma nacionalidade literária e humana que vem, na contramão, colonizando as ditas culturas civilizadas.
Sobre o Autor
Miguel Sanches Neto:
Escritor paranaense e crítico literário, assinando coluna semanal no maior diário do Paraná, a Gazeta Povo (Curitiba), tendo publicado só neste jornal mais de 350 artigos sobre literatura, fora as contribuições para outros veículos, como República e Bravo!, O Estado de São Paulo, Jornal da Tarde (São Paulo) e Poesia Sempre e Jornal do Brasil (Rio de Janeiro).
LEIA MAIS

Depois de dez anos de sua estréia, Alexandre Brandão oferece uma nova safra ficcional em Estão todos aqui, livro que reúne quatro contos e uma novela, enfeixados por um caprichado projeto gráfico da coleção Novo Conto Novo, da editora Bom Texto. Leia mais

A princípio "Pavios Curtos" (anomelivros, 2004) nos parece um livro muito mais técnico, mas ao adentrarmos em suas páginas, vamos percebendo que por trás daquela suposta frieza, sua poesia passa-nos uma forte carga emotiva.
Leia mais