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O acaso e a filosofia
por André Carlos Salzano Masini
*
publicado em 23/07/2003.
"Só mais um minutinho..."
De outro, o senso de responsabilidade retrucava:
"Levante já!"
Parecia mesmo que um diabinho e um anjinho me sussurravam ao ouvido.
No fim escolhi levantar...
Escolhi?
Intimamente tenho convicção de que sim, de que optei por sair da cama e de que igualmente poderia ter optado por ficar.
Os seres humanos geralmente têm essa sensação de que realizam escolhas, de que possuem livre-arbítrio.
E é aí que está o problema: essa nossa capacidade de realizar escolhas não apenas é impossível de ser comprovada por métodos científicos, mas está em severa contradição com diversos aspectos da ciência.
Vimos, nos artigos anteriores, que a física clássica vê o mundo material como algo determinístico, ou seja, como um gigantesco mecanismo de relógio pré-programado. Vimos também que, por outro lado, a física quântica admite eventos aleatórios: o acaso (mas note-se que acaso é algo essencialmente diferente de escolha). Nenhuma das duas físicas enxerga no mundo material qualquer pista de nossas escolhas.
Quem está errado? a física ou nossa percepção?
A solução desse aparente dilema está em compreender que a física tem escopo limitado e que nele não se incluem os pensamentos ou escolhas dos seres vivos.
A física pode compreender os átomos de carbono que constituem nossos corpos - que aliás são idênticos aos átomos do grafite e obedecem às mesmas leis naturais - mas essa compreensão se restringe aos átomos em si, não alcança a entidade ser humano. Entre átomos e conclusões sobre a não existência de livre arbítrio, a distância é enorme.
Se o mundo físico é determinado, então nós também somos, e qualquer "escolha" (como a que eu fiz hoje de manhã) não passa de uma ilusão (que já estaria escrita desde o início dos tempos)... Eis o típico argumento falacioso, que parte de uma conjectura científica possível, mas a extrapola para muito além da fronteira da ciência. A física sim explicou, de forma determinística, o movimento dos planetas em suas órbitas e o das folhas levadas pelo vento, mas jamais chegou sequer perto de explicar o funcionamento de uma escolha (ou não escolha) feita por um ser vivo.
O livre-arbítrio, portanto, é assunto mais para a filosofia que para a ciência; e mesmo dentro da filosofia continua sendo controverso. Se de um lado, a sensação de livre-arbítrio está presente na maioria dos seres humanos (O fato de eu possuir vontade é tão inegável quanto o fato de minha própria existência, escreveu o genial etologista Conrad Lorenz); de outro lado, as escolhas humanas não são isentas de causas subjacentes, que têm sido identificadas desde a Antiguidade.
Tais causas subjacentes existem mesmo naquelas escolhas em que o agente acredita ter agido com plena liberdade: e.g. a escolha de levantar nesta manhã, que me pareceu um puro ato de vontade; mas que, quando analisada em maior detalhe, revela depender de diversos fatores, como a genética (maior ou menor ansiedade, necessidade de dormir, etc...), a cultura e outros... O mesmo Lorenz demonstra, através do comportamento animal, que nossa vontade e nossas escolhas têm alcance limitado, e que impulsos inatos estão presentes em todos nós seres vivos.
Aí chegamos a outra questão importante: Caso o homem seja realmente escravo do determinismo, estaria ele isento da responsabilidade moral por seus atos?
"Não", respondem os filósofos de primeira linha. (Nosso mundo sem responsabilidade moral é impensável!)
Mas como pode haver responsabilidade por aquilo que não se pode evitar?
Essa questão foi solucionada de distintas formas por distintos filósofos. Spinoza, e.g., propôs que, sendo os seres humanos entes autônomos, eles seriam responsáveis por seus atos mesmo que esses atos obedecessem a causas determinísticas.
Nesses nossos 5 artigos pudemos examinar o acaso sob as mais diversas perspectivas, vimos que nem a ciência nem a filosofia chegaram à palavra final sobre o assunto, e acabamos voltando ao ponto de partida: Acaso? Determinismo? Livre-arbítrio? Onipotência divina? Enfim... caberá apenas ao leitor escolher em qual acreditar.
Escolher?
Bem... escolher, ou pensar que escolheu, ou ser determinado a acreditar, ou casualmente acreditar, ou ser guiado pela mão Dele a...
Sobre o Autor
André Carlos Salzano Masini: André C S Masini nasceu em São Paulo, em 1960. Aos 17 anos escreveu sua primeira história de ficção científica, "Os montes além do deserto", que existe até hoje em manuscrito. Cursou Geologia na USP, e formou-se em 1983.Hoje tem dois livros publicados: a ficção científica "Humanos" e o livro de traduções e estudos “Pequena Coletânea de Poesias de Língua Inglesa”, além disso tem uma coluna semanal no Jornal "O Paraná", e é diretor de um centro cultural virtual, a www.casadacultura.org, que divulga seus trabalhos e tem milhares de assinantes em todo o Brasil.
contato: andre@casadacultura.org
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