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Macarao – um bairro bolivariano
por Elaine Tavares
*
publicado em 28/02/2006.
Nossos contatos são dois caraqueños bem distintos entre si. Um deles, Raul, é micro empresário, iniciando agora um negócio de frango. O outro, Daniel, é funcionário de um hospital e morador de Macarao, populoso bairro da periferia, misto de reduto português com venezuelanos da gema. São eles que nos levam pelos caminhos intricados das ruas da cidade que margeia o centro. Saímos da estação Belas Artes até a última estação do metrô: Los Adjuntos. Percurso longo no qual se podem ver as casinhas construídas pelo morro afora, num emaranhado de bairros pobres, mas não miseráveis. Bem ali, na saída, já se pode ver a balbúrdia da construção de mais uma parte do metrô. “Vai até o estado de Miranda”, diz Daniel, orgulhoso da obra. A construtora é brasileira e, de noite, nos bares, é bem comum ver os trabalhadores tomando uma gelada e sonhando com a volta à terrinha.
Poucos metros depois da saída da estação, bem ao lado da obra, está a Unidade Educativa Bolivariana Cláudio Feliciano, uma escola modelo, a maior delas, da nova fase da vida das gentes da Venezuela. São 1.800 alunos que circulam pelas salas de aula novinhas em folha. “Aqui a gente tem merenda, material escolar e até o uniforme de graça”, diz Kimberli, uma garotinha sapeca de olhar intenso e, embora deixe bem claro que não é chavista, ela reconhece que esta escola é muito melhor do que a antiga, onde estudava. A professora Carolina Ribeiro mostra a sala de aula onde alguns alunos estão desenhando ao som de uma música popular. A paz é quebrada com a chegada dos estranhos, e logo Carolina já não consegue controlar a confusão. Todo mundo grita, pula e quer posar para fotos.
Ela conta que para dar aula numa escola bolivariana os professores precisam ser graduados na universidade. Na cozinha, fazendo a merenda, estão algumas mães de alunos que ajudam com trabalho voluntário. Também os pais dão sua contribuição fazendo serviços de pintura ou de consertos. “Tudo aqui é no coletivo e os pais sabem que estão contribuindo com algo que é bom para seus filhos”. Caroli na ainda revela que uma das características da escola bolivariana é que ali as crianças também aprendem um idioma originário além do inglês. “Queremos recuperar a cultura dos povos autóctones que, afinal, somos nós mesmos”. Daniel mostra cada sala com a alegria estampada nos olhos. “Aqui estuda minha filha”. Ao final da visita somos brindados com uma apresentação sobre drogas.
Subindo a rua saímos em direção ao centro médico, onde ficam os médicos cubanos, protagonistas da Misión Barrio Adentro, que atuam na lógica da saúde da família. Por todos os bairros estão as pequenas casinhas de tijolo à vista onde a saúde agora se faz. Naquele dia, os médicos estavam em uma reunião fechada e não puderam conversar conosco, mas Daniel, que mora no bairro, diz que o que antes não existia, agora há. “Os médicos vão nas casas, conversam com as famílias, trabalham com medicina preventiva. É outra relação. Antes, na Venezuela, os médicos não queriam saber de atender pobre. Agora, com os cubanos, a gente tem saúde”. Pelas calçadas também se estendem as barracas de lona do comércio informal. Não há como fugir delas. Nos bairros vendem-se produtos de toda a sorte tais como peixe e carne de galinha, embora não faltem os indefectíveis telefones.
Para chegar até a creche, ou nos “simoncitos” como são chamados os espaços que abrigam crianças, é preciso pegar um micro-ônibus. E lá vamos nós em direção ao céu, bem no alto do morro. A casa é simples e peq uena. Mal se pode crer que ali ficam 60 niños durante todo o dia. Alguns deles estão dormindo no chão. Carmem Osticochea é a educadora que cuida do local. Ela tem 54 asnos e há 13 trabalha com crianças naquele bairro. “Antes isso aqui era só um depósito de niños. Agora não. Estamos sendo vistos, estão sendo feitas obras, temos móveis novos. Temos merenda e salário para as voluntárias”. O dinheiro é pouco, 226 mil bolívares (226 reais) por mês, mas para quem trabalhava de graça é um avanço e tanto. Carmem é uma dessas mulheres que não se satisfaz com pouco. Protagonista da revolução bolivariana ela não só cuida da creche como atua no Comitê de Saúde e participa de todas as discussões na comunidade. “Agora, com Chàvez, está tudo chevere”, diz, sorrindo, enquanto ergue nos braços um pedacinho de gente que chora pedindo carinho. “Chevere” é uma expressão típica da Venezuela que quer dizer “tudo muito bom e bonito”.
A caminhada por Macarao segue até a parte onde vivem os imigrantes portugueses. É como uma ilha no meio do bairro. Casas avarandadas, coloridas, cheias de sacadas. Tem também uma pequena praça onde as famílias sentam-se ao fim da tarde para conversar. A vida ali parece seguir sem percalços. É hora de descer e lá vamos nós outra vez no ônibus. Chove forte e os estudantes se amontoam nas paradas, entrando aos borbotões. Ao saber que ali viajam brasileiros logo querem saber de coisas. Fazem perguntas, contam de suas vidas e confirmam o que dizem quase todas as gentes mais humildes de Caracas. “Com Chàvez, é bom!” Do ônibus passamos ao metrô, voltando para o centro da cidade. Vamos passar no “23 de Enero”, o famoso bairro que cerca Miraflores, o palácio presidencial. Pegamos mais dois outros ônibus e ali estamos.
Diz Daniel que até poucos anos ninguém poderia andar no bairro tal como fazíamos. “Era um reduto de violência, de assaltos, de gangues. Agora não, a comunidade assumiu o controle. A gente pode passear, os velhos podem ficar ao sol e as crianças brincam nas praças. Tudo isso só foi possível com o poder popular”. Segundo ele, ali no 23 de Enero, incrustados nos milhares de apartamentos populares que compõe o bairro estão os mais ferrenhos defensores da revolução bolivariana. São os tupamaros (uruguaios) e os chavistas de carteirinha. Foram eles que, no golpe de 2002, desceram rua afora até o palácio, prontos a defenderem com arma s e com a vida o governo de Hugo Chàvez. É um bairro mítico e não há quem não se arrepie ao andar pela calle La Silsa , uma rua imensa, cheia de casas e muros pintados com grafites pró-revolução. Raul conta que não só ali, mas em outros tantos bairros pobres, as pessoas agora tem também o gás encanado, chegando diretamente nas casas, num acordo fechado com a PDVSA (empresa do petróleo). Ele se emociona porque lembra que quando mais jovem fez muito trabalho comunitário naquele lugar. “É bom ver isso assim”.
Dali seguimos para o centro onde nos despedimos de Raul e Daniel. Os dois venezuelanos que nos deram uma tarde de caminhada agradeceram pelo fato de termos querido andar pelas ruas, pelos bairros mais pobres. E nós agradecemos por termos tido a oportunidade de conhecer um pouco mais de uma Caracas que não estava no roteiro do Fórum. Poucas horas depois, no ginásio esportivo, o presidente Chàvez falaria aos participantes do Fórum, na Assembléia dos Movimentos Populares. Nunca um discurso nos pareceu tão concreto. Porque ainda tínhamos nas retinas as imagens de Macarao e do 23 de Enero, lugares em que o povo é verdadeiramente protagonista da história.
Sobre o Autor
Elaine Tavares: Jornalista e educadora popular. Mestre em Comunicação Social pela PUC/RS. Trabalha na universidade pública desde 1994, hoje integrando o grupo do OLA. É uma das coordenadoras gerais do Sindicato dos Trabalhadores da UFSC e atua no projeto de arte, cultura e comunicação popular Barca do Povo. Coordena o jornal comunitário O Sardinha, na cidade de Itajaí. Militante da luta contra a ALCA, do Movimento Contra a Violência e do Movimento Anti-Manicomial. É uma das idealizadoras da Companhia dos Loucos, um movimento político-cultural de libertação da palavra, criado em 2002 por jornalistas e educadores, e também do Movimento Janelas Abertas, que busca questionar a "shopinização" da arquitetura no mundo moderno.eteiaufsc@yahoo.com.br
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