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O andarilho marrom
por Airo Zamoner
*
publicado em 28/11/2006.
Caminhava pela margem da estrada que liga Curitiba a São Paulo, nas imediações da entrada para minha Quatro Barras, cidade que adotei há quase quinze anos. Como não levantava os olhos, o acostamento o conduziu imperceptivelmente para o centro da cidade. Resolvi acompanhá-lo de longe, para ver quando notaria o engano. Desceu a grande curva e passou por baixo do magnífico portal. Os transeuntes logo percebem que estão entrando numa área diferente, um lugar em que a natureza tem vez e a preservação é o ponto alto. Ele nem se deu conta de nada. Subiu em direção ao semáforo moderno, sem levantar a cabeça uma única vez.
Rosto marcado pelas surras da vida. Olhar mortiço. Muito cabelo explodindo para fora de um chapéu ensebado. Olhando-o de longe, era apenas mancha amarronzada no cenário. Tudo nele era marrom. Pele. Roupa. Sandálias. Olhares. Tristeza. A tristeza era tão profunda, que sua alma também deveria estar marrom.
Semblante fixado para baixo, o corpo se vergou para compensar a inclinação da subida. Os passos se encurtaram e a marcha vagarosa se tornou ainda mais lenta. Passei por ele, procurando um lugar para estacionar por ali, de fronte à Papelaria Pôr-do-sol. Voltei a pé pelo outro lado da rua, sempre observado o andarilho marrom.
Ele não se importava para aonde ia. Queria apenas ir... Ou, quem sabe, fugir. Deixar sua vida para trás. Abandonar suas marcas indesejadas. Talvez esquecer alguma coisa trágica. O que poderia ser? Precisaria abordá-lo, arriscar uma fala amistosa. Quem sabe me tornar um ombro amigo. Que bobagem! Um perfeito estranho, ou um estranho perfeito, não me daria atenção. Ou pior: pedir-me-ia alguma coisa, moeda, passagem de volta, de ida e sabe-se lá o que mais todos pedem por aí.
Ele prosseguia lento, passando em frente à Prefeitura. Não desviava de ninguém. Desviavam dele, isto sim. Alguns olhavam para trás, sacudindo a cabeça em desaprovação. Talvez cheirasse a álcool. Talvez cheirasse muito mal. Sujo como estava, certamente não estaria perfumado.
Continuei pelo outro lado da rua. Já estava diante do Colégio Graciosa. Foi aí que aconteceu o inusitado. Alunos se aglomeravam, uniformizados, alegres, falantes, prontos para uma chacota qualquer. Pela primeira vez, desde que o encontrei na estrada, ele parou. Olhou para os alunos, voltou seu rosto para o Colégio. Levantou a cabeça, percorreu toda a fachada com o olhar vagaroso. Janela por janela. Parede por parede.
Ficou ali, estático, apenas olhando o prédio, enquanto os alunos se dissipavam. Ele não arredou pé.
Resolvi me aproximar. Cheguei de mansinho. Vi seu rosto borrado pela mistura de poeira e lágrimas. Arrisquei um “olá” discreto. Olhou-me demoradamente. Passou as costas das mãos pelo nariz, nos olhos. Mais aumentando a sujeira que diminuindo. Arriou a mochila das costas. Escarafunchou no meio da balbúrdia de coisas inúteis. Tirou uma foto com as bordas carcomidas. Foto envelhecida, em preto e branco, beirando sépia. Virou-a para que a visse. Era a fachada de um Colégio antigo e uma turma em festa de formatura. Todos rindo felizes, professores e alunos. Ele apontou o dedo emporcalhado para um dos mestres. Olhei demoradamente. Vi um homem jovem, semblante cheio de alegria e o reconheci! Fiquei sem palavras. O professor era o andarilho de Quatro Barras.
Guardou a foto. Fechou a mochila. Virou-se para o centro e saiu caminhando, mais trôpego, mas cabisbaixo, muito mais marrom.
Sobre o Autor
Airo Zamoner: Airo Zamoner nasceu em Joaçaba, Santa Catarina, criou-se no Paraná e vive em Curitiba. É atualmente cronista do jornal O ESTADO DO PARANÁ e outros periódicos nacionais. Suas crônicas são densas de conteúdo sócio-político, de crítica instigante e bem humorada. Divide sua atividade literária entre o romance juvenil, o conto e a crônica, tendo conquistado inúmeros prêmios e honrosas citações.< ÚLTIMA PUBLICAÇÃO | TODAS | PRÓXIMA>
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