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FOGOS DE FIM DE ANO

por Miguel Sanches Neto *
publicado em 31/12/2005.

Como não gosto de rojões, hoje é um dia complicado para mim. Cada reveillon é a encenação realista demais do apocalipse, com os horrores do fim do mundo, pelo menos do fim de um ciclo. Não vejo graça nesta queima de fogos e tento sempre me isolar em um canto qualquer para, resignadamente, esperar que cessem os estouros, não sem antes sofrer sobressaltos, taquicardia e raiva.

Anos atrás, conheci um italiano que havia lutado na II Guerra Mundial, e que sobrevivera sem nenhum ferimento, mas marcado pelo pânico pré-bombardeio. Ele me contou sua história depois de um episódio estranho. Estávamos em um restaurante conversando animadamente, quando, ao ouvir lá fora um rojão muito forte, ele se atirou no chão, estremecendo a mesa e quase desperdiçando nossa refeição, que já havia sido servida.

Como ninguém mais além de mim sentira medo do barulho, ficou uma situação surreal. Um senhor bem vestido deitado entre mesas. Eu o ajudei a se levantar e ele então me contou seu drama. Sabia que a guerra tinha acabado e que estava muito distante, no tempo e no espaço, daqueles instantes perigosos de sua vida. Mas seu inconsciente não deixava de lhe pregar estas peças, obrigando-o a passar tais constrangimentos. Para uma parte de seu corpo, qualquer barulho de bomba ativava seu sistema de defesa.

Foi assim que sobreviveu aos anos de combate na frente de batalha, frente de batalha da qual nunca saiu. Contou-me ainda que, na Itália, depois da guerra, foram proibidos os rojões. Somente fogos que não fazem barulho podem ser usados, algo que nunca vamos entender porque não somos uma nação guerreira e sim festiva.

Terminamos aquele almoço sem maiores surpresas, mas um tanto apreensivos, a qualquer momento um avião poderia despejar bombas sobre nossa cabeça e, num combate, há que se ficar atento, com todos os sentidos de sobreaviso.

Sou um neurótico de guerra sem nunca ter participado de uma. Então, os fogos de fim de ano são um tormento para mim. Entre os presentes de Natal que ganhei (uma lupa, um estilete, um apagador e dois lápis da Faber-Castell), infelizmente não veio nenhuma dessas borrachinhas que protegem os ouvidos de quem nada. Seria muito útil.

Vou me trancar na biblioteca ou no quarto, colocar no aparelho de som um CD de Bach e ficar esperando o fim do fim do ano. Depois, quando tudo estiver calmo, farei espocar um espumante e, sozinho, brindarei ao silêncio.

O silêncio que já começa a se manifestar nesta época do ano. O melhor lugar para se passar as férias e se curar do stress citadino é... a própria cidade da gente, pois desde o dia 26 está ocorrendo um progressivo esvaziamento populacional, com grandes levas de veranistas disputando os raros centímetros quadrados de praia, a escassa água tratada, os comprimidos para dor de cabeça nas farmácias, a comida levemente deteriorada em restaurantes improvisados. Enfim, a praia que era para ser uma estação de descanso torna-se uma pequena estadia no inferno de nossos problemas sociais, com idiotas ouvindo as piores músicas nos mais potentes aparelhos de som, contribuição para o progresso da imbecilidade tecnológica.

O primeiro conforto para quem fica pode ser imediatamente percebido no trânsito. Não pegamos mais engarrafamentos e há vagas para estacionar nos lugares mais concorridos. Imensos vazios surgem nas ruas e podemos assim até praticar um esporte inviável em outras épocas – passear de carro vagarosamente pelas vias rápidas, reaprendendo a soletrar a paisagem urbana. Bares e lojas ganham visibilidade, pois agora não há carros estacionados nem movimento nas calçadas. Alguns não-veranistas convictos se sentam nos bancos das praças, admirados com esta quietude bucólica em pleno centro.

Assim como as roupas largas que vestimos para enfrentar estes dias de ócio, a cidade também fica folgada e cabemos nela de uma forma mais pacífica, sem a sensação de estar sendo sufocado. Neste período, e ao longo de janeiro, a cidade se torna íntima, perde suas crispações cosmopolitas e podemos gastar nossas horas em passeios campestres sem deixar o calçamento. As árvores ressurgem mais verdes e nos dão este presente de folhas ao vento e passarinhos, cujo canto agora pode ser ouvido em algumas ruas mais arborizadas.

Ganhamos o campo sem deixar a cidade, porque esta desceu para praia, com os moradores mais barulhentos e mais agitados. Até os restaurantes modestos acabam nos servindo uma comida que no geral é boa – só falta uma compreensão maior de nosso descanso, deixando desligada a detestável televisão pendurada na parede. Encontramos os lançamentos disponíveis nas locadoras, e mesmo os tomates ficam mais bonitos na feira. São os ares rurais.



A cidade se humaniza e nos dá momentos de lazer. Não a deixaremos por nada neste período, quando ela é nossa possível Pasárgada.

Sobre o Autor

Miguel Sanches Neto: Escritor paranaense e crítico literário, assinando coluna semanal no maior diário do Paraná, a Gazeta Povo (Curitiba), tendo publicado só neste jornal mais de 350 artigos sobre literatura, fora as contribuições para outros veículos, como República e Bravo!, O Estado de São Paulo, Jornal da Tarde (São Paulo) e Poesia Sempre e Jornal do Brasil (Rio de Janeiro).

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