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ALEGRIA

por Miguel Sanches Neto *
publicado em 17/12/2005.

Depois do banho, colocou a calça usada, uma camisa limpa e os tênis velhos, sentindo-se renovado para o passeio vespertino. A vantagem de morar em hotel é ter o centro da cidade à disposição, como se fosse um Jardim de Versalhes particular, embora sem nenhum cuidado, mas isso não tinha importância para ele.

Poderia ter feito a barba. Depois do serviço, passou em uma banca de jornal e viu o preço de um aparelho de barbear bem ordinário – apenas cinqüenta centavos. Mas resolveu não derrubar aquela barreira protetora, para poder coçá-la na hora de se defender de algum olhar crítico.

Nos finais de semana, quase não conversava. Nenhum amigo, nenhum bar onde se conhece o garçom ao preço de repetidas bebedeiras. Gostava de alternar os bares, eram muitos no centro, e ele tinha um método próprio de embriagar-se – uma cerveja e uma pinga em cada estabelecimento, assim não se sentia parte de nada.

Com a roupa encardida, os cabelos ainda úmidos e a barba semidomada, saiu para o sol da tarde, revendo o movimento meio alucinado das compras de natal. Ele riu para si mesmo. Andava desviando de mães suadas com sacolas, pais com bermudas e crianças apontando coisas nas lojas. As famílias só são unidas nas compras, pensou.

Fugindo das ruas mais movimentadas, caminhou rumo a um bar que ainda não tinha visitado. No balcão sujo e torto, havia uma árvore de natal com pequenas luzes. O garçom idoso estava com um gorro de Papai-Noel. Ele pediu um café e uma pinga, alterando golinhos de um e de outro. Pagou com umas moedas e saiu, ganhando do homem um Sonho de Valsa, que trazia um bilhetinho de boas festas colado na parte de baixo. Na rua, abriu o papel vermelho e brilhoso como as roupas dos papais-noéis e, sem ler a mensagem, comeu o bombom, que estava mole e meio passado. Mas ele achou gostoso. Eram os bombons prediletos de sua mãe, que Deus a tenha.

Contava agora 45 anos, mas desde pequeno tomara a precaução de não acreditar em Papai-Noel. Nem na figura mitológica nem na paródia oferecida pelo comércio. Ele caminhou observando a festa das formigas consumistas. Com a unha comprida do mindinho, limpou a falha entre os dentes, onde havia se alojado um pedaço de chocolate.

Logo estava no paraguaizinho, no meio das bugigangas. Uma mulher jovem, com um bebê num carrinho, abria espaço na frente de uma banca, tentando alcançar alguma coisa, esquecida da criança que, curiosa, olhava o movimento, aprendendo as primeiras lições de consumo. Ele então se lembrou de uma matéria vista no dia anterior: 970 mil pessoas compraram acessórios para bebê nos últimos 30 dias na cidade de São Paulo. E isso porque um milhão delas compraram preservativos neste mesmo período, impedindo a fecundação de idêntico número de novos consumidores.

Andou um pouco, até um mascate que oferecia CDs piratas por 3 reais. Não tinha aparelho de CD no quarto, apenas um rádio-relógio que ganhara de um colega de trabalho. Poderia providenciar um. Separou mentalmente o dinheiro depositado na poupança, mas desistiu na hora. Preferia as músicas oferecidas pelas rádios locais.

Venceu o corredor polonês do paraguaizinho e foi para o shopping. Os carros faziam fila para entrar no estacionamento, todas as ruas em volta foram tomadas, e ele se sentiu satisfeito por não saber sequer dirigir. Mais uma vantagem de morar num hotel central.

No primeiro piso do shopping, viu uma farmácia, que também estava cheia. Até uma farmácia fatura com o Natal, ele pensou, lembrando-se da pesquisa: 2,9 milhões de pessoas compraram absorventes nos últimos 30 dias na cidade de São Paulo. A euforia das compras aumenta o fluxo menstrual? Ou o espírito natalino fazia com que as mulheres saíssem estocando tudo em grandes quantidades, até absorventes?

Sentou-se num banco que encontrou vazio e ficou olhando as pessoas. Todos se vestiam como se já estivessem na praia, num desejo geral de descontração (570 mil pessoas compraram biquínis nos últimos 30 dias na cidade de São Paulo). Ele era o único com uma calça suja ali, mesmo as pessoas humildes exibiam seus melhores trajes, leves e coloridos. Veio a vontade marota de tirar o tênis e coçar uma incômoda frieira, mas se controlou e ficou apenas movimentando os dedos dentro do calçado. Duas meninas de uns 11 anos sentaram-se a seu lado. Ele notou que, embora ainda sem seios, elas portavam sutiãs, preparando-se para a vida adulta de consumidora (1,1 milhão de pessoas compraram calcinhas e sutiãs nos últimos 30 dias na cidade de São Paulo). Ele adorava estatísticas, não esquecia nenhum número.

Havia carros novos expostos no shopping. Os carros tinham invadido não apenas as ruas, mas também este espaço interno. Ele já não reconhecia mais as marcas de veículos que circulavam, tanta a oferta, e gostava de se referir aos carros em espanhol, eram “los coches”, o que fazia dos motoristas, numa tradução brincalhona, verdadeiros cocheiros. Ele ria a cada idéia que tinha.

Saiu para um reconhecimento de área, averiguando vitrines. Na perfumaria, um frasco custava 168 reais. Ele detestava qualquer tipo de fragrância, por isso usava como desodorante uma camada de pomada Minâncora, a mesma apreciada por sua avó.

Na livraria, viu várias sugestões de livro, mas nenhum que despertasse seu interesse. Poderia continuar relendo seus poucos volumes de poemas e seus romances clássicos, já era leitura demais para um pequeno funcionário. A vitrine das bolsas Victor Hugo (oh não, justamente o nome de um de seus poetas prediletos) era a mais aristocrática. Nenhum cartaz de promoção, nenhum sinal do mau-gosto natalino. Parou na frente de uma bolsa que custaria 6 vezes um salário mínimo, ou seja: o rendimento semestral de uma empregada doméstica (2,2 milhões de pessoas compraram chinelos nos últimos 30 dias na cidade de São Paulo).

Notou que um segurança do shopping o acompanhava. Para evitar uma abordagem constrangedora, estava destoando muito, ele coçou a barba filosoficamente e foi para a porta principal. Antes de tomar a rua que o levaria ao seu hotelzinho, olhou para dentro, sentindo-se feliz, muito feliz, por não desejar nada do que estava sendo vendido ali ou em qualquer outro lugar – experimentando assim uma verdadeira alegria natalina.

Sobre o Autor

Miguel Sanches Neto: Escritor paranaense e crítico literário, assinando coluna semanal no maior diário do Paraná, a Gazeta Povo (Curitiba), tendo publicado só neste jornal mais de 350 artigos sobre literatura, fora as contribuições para outros veículos, como República e Bravo!, O Estado de São Paulo, Jornal da Tarde (São Paulo) e Poesia Sempre e Jornal do Brasil (Rio de Janeiro).

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