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NATAL NA ROÇA

por Miguel Sanches Neto *
publicado em 26/12/2005.

O Natal começava bem antes do Natal, quando se apartavam no quintal ou no galinheiro os frangos que seriam sacrificados. Eles permaneciam protegidos, engordando com o milho em abundância, colhido na propriedade e guardado em espigas na tulha, milho que dava consistência àquela carne. Era a partir de agosto ou setembro que os frangos entravam em outro regime alimentício. Um frango demorava seis meses para ficar no ponto de panela.

Na véspera, matava-se também um boi, repartido entre os vizinhos – cada um levava para casa, em bacias, pedaços imensos da rês, que seriam depois picados em toletes para o churrasco.

Não havia ceia na noite que antecede o nascimento de Jesus, mas todos iam à missa do galo, mesmo os que não eram religiosos. Saíam no fim da tarde, enchendo os carroções de roda dura, aos quais se atrelava mais um cavalo, devido à tumultuada carga humana. As pessoas vestiam suas roupas de trabalho, mas levavam um embrulho com as vestes novas, que seriam trocadas na cidade, na casa de conhecidos. Na entrada da cidade, apeavam do carroção, dispersando-se por vários endereços. Banhavam-se em baciões de lata, mudavam a roupa e seguiam para a missa, que começava pontualmente à meia-noite, pois não havia a ceia para atrapalhar o programa religioso, principal evento da data. A partir da uma, já no dia 25, todos voltavam no mesmo carroção, agora com as roupas novas no corpo e as velhas envoltas em papel de embrulho, amarradas com barbantes.

Ninguém trocava presente, mas todos mandavam preparar uma muda nova de roupa e compravam calçados, estreados na missa do galo e depois usados, já meio sujos, no dia de Natal.

Ainda cedinho, quando os pássaros quebravam o silêncio daqueles ermos, uma senhora preparava o café e punha feijão para cozinhar num imenso caldeirão de ferro, acomodado na chapa do fogão de lenha, onde também ficava o bule, para que o líquido permanecesse quente, tornando o café mais denso e forte. Ao lado, a panela de banha aquecida para temperar os alimentos.

Ao se levantar, as pessoas sentavam-se à mesa da cozinha, imensa e rústica, encontrando uma caneca para o café, pratos de lata, colheres, potes de farinha de milho e saleiro. Colocava-se farinha e sal no prato, ia-se para o fogão, despejava-se uma colher de gordura quente sobre a farinha e, depois, algumas conchas da água em que havia sido cozido o feijão. Esta massa era comida na companhia de uma caneca de café.

Já no início da manhã, todos participavam dos preparativos do almoço. Com um pé sobre as duas pernas do frango e outro sobre as asas, as mulheres degolavam os animais, aparando num prato o sangue escorrido. A este sangue se acrescentava sal para que ele fosse frito, como uma omelete, e depois comido pelos que trabalhavam.

No dia anterior, alguém havia comprado na venda uns garrafões de pinga, uns engradados de tubaína, meio quilo de cebola, condimento usado apenas nas festas, alguns maços de macarrão número 4, imensos e escuros, e latas de massa de tomate.

Com a cebola, as mulheres preparavam o tempero do frango, colocando-os em assadeiras escuras e tortas, que iam para o forno a lenha do terreiro, construído em forma de oca. Depois fritavam a cebola na gordura e despejavam a massa de tomate, preparando o molho para o macarrão, que era cozido até inchar e quase desmanchar. Com o feijão fresco, fazia-se uma boa quantidade de virado, usando farinha de milho, acompanhamento indispensável da macarronada, que ficava rosada e tinha um gosto especial, o da massa de tomate, ingrediente raro nesta culinária de roça.

Os homens ficavam responsáveis pelo churrasco. Cavavam no quintal uma valeta, que mais parecia um cova. Colocavam madeira lá dentro, colhida nas matas vizinhas, e ateavam fogo. Enquanto uns cuidavam disso, bebendo de tempos em tempos talagadas de pinga morna, outros colhiam no campo galhos verdes, descascando-os com uma faca afiada e apontando-os bem. Entregavam feixes de espetos de pau ao churrasqueiro, que espetava neles os toletes de carne de boi, que haviam dormido em tambores, num lugar fresco, com um molho feito com cebola, alho, bastante sal e água.

A valeta em brasas era coberta com estes espetos, cujas pontas ficavam diretamente na terra, e sabia-se o ponto da carne pelo estado da madeira. Quando ela começava a torrar, era hora de comer. Ninguém usava pratos ou talheres para esta atividade. Cada cristão pegava seu espeto e comia diretamente nele, de forma primitiva.

Sentava-se à mesa apenas para dar conta do virado, da macarronada, do frango (sem usar talheres também) e do arroz branco, que não era propriamente branco. Havia sido colhido no sítio e descascado no pilão, o que o deixava meio integral, alterando a sua cor e o seu gosto. Os homens continuavam tomando pinga morna, mas as mulheres e as crianças se deliciavam – era a única vez no ano – com as garrafas de tubaína.

Na tarde anterior, num tanque cheio de água fresca, tirada do poço mais fundo, tinham sido acomodadas as garrafas de tubaína, para que no outro dia ficassem na temperatura ideal. As crianças não conheciam o gelo, e se conhecessem não o suportariam.

Como não havia abridor de garrafa, e muito menos canudinho, furava-se a tampa com um prego, e cada um exibia sua garrafa, tal como no caso do churrasco.

Os homens já estavam bêbados a esta altura e tinham bigodes e barbas lambuzados de gordura e molho de tomate. Deitava-se então à sombra de uma árvore, os cachorros avançavam sobre espetos abandonados pelos bêbados e pelas crianças e a tarde ia findando. A mulheres recolhiam as tralhas, as mesas e os bancos postos sob as árvores, as crianças buscavam algum brinquedo no sítio, os homens curavam a bebedeira com um sono sonoro.

Acordariam com o cheiro bom do café recém-coado, que lhes devolveria o ânimo depois daquele desregramento.

As roupas novas estavam sujas de terra e de gordura, os tecidos haviam sido amaciados pela festa. Ninguém trocara um único presente nem desejara feliz natal, porque a felicidade era um agora que não dependia de rituais refinados nem da posse de objetos.

Sobre o Autor

Miguel Sanches Neto: Escritor paranaense e crítico literário, assinando coluna semanal no maior diário do Paraná, a Gazeta Povo (Curitiba), tendo publicado só neste jornal mais de 350 artigos sobre literatura, fora as contribuições para outros veículos, como República e Bravo!, O Estado de São Paulo, Jornal da Tarde (São Paulo) e Poesia Sempre e Jornal do Brasil (Rio de Janeiro).

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