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Pelo som do sino

por Maria Cristina Castilho de Andrade *
publicado em 18/12/2005.

De acordo com ela, nasceu fracassada. Da mãe, sabe somente que a entregou, com três anos, a um orfanato. Do pai, não há sinal algum. Lembra-se, daquela época, do calor do sertão nordestino, da falta de bonecas e riso, da ausência de abraços com laços. Aos nove anos, uma família estranha a levou como adotada. Continuou desprovida de brinquedos, de sorrisos, de caderno e lápis, do enrodilhar gostoso no pescoço ou na cintura de um adulto com jeito de pessegueiro em flor. Uma única frase preencheu o espaço da nova moradia: “Como você é enjeitada, serve somente para esfregar o chão!” O eco repetia a toda hora: “Esfregar o chão... Esfregar o chão... Esfregar o chão... O chão... O chão... o Chão... Não... Não... Não...”

Aos catorze anos, num dia qualquer, ao perceber que os olhares e as carícias do filho do patrão eram de desejo sem ternura, guardou no alforje os joelhos machucados e o coração com amargura e partiu para São Paulo no primeiro pau-de-arara. Ninguém se importou ou foi atrás.

Cidade grande. Prédios que gargalhavam diante de sua pequenez. Monumentos desfeitos de significado. Gente estranha, com olhos sem ver, a passar depressa por ela. Sentou no banco do jardim à espera do nada. Ofereceram-lhe a possibilidade de uma cama no hotelzinho sinistro, em troca das mesmas carícias que lhe fazia e lhe pedia o filho do patrão. E foi assim que sobreviveu: no aguardo diário do vazio.

Veio para cá, não sei em que tempo e nem o motivo. Três filhos nasceram dela. De esquina em esquina, de morro em morro, à espera do nada, ofereceu-lhes abrigo, refeição e vestuário. Pensou para eles uma história diferente: em lugar de pau-de-arara, asas de águia. Deu-lhes joelho sem feridas e possibilidade do enrodilhar gostoso no pescoço ou na cintura de um adulto com jeito de quaresmeira.

O mais velho tropeçou em desencontros. Cachimbo com pedra. A polícia surgiu e ela chorou coágulos de suas vísceras. Ouviu dele que tinha vergonha da mãe. O eco retornou: “O chão... O chão... O chão...”

Vagou pela cidade, vestida de nada, de chão, de não. Quarta-feira. Dezoito horas. Imaginou que o sino da Catedral Nossa Senhora do Desterro tocava para ela. Atravessou o corredor da Igreja. Deteve-se em Maria, grávida, a caminho de Belém. Não lhe era estranha. Ofereceu-lhe seu sorriso dolorido. Passou pela sacristia, chegou à sala amarela e se fez presença na reunião da Pastoral da Mulher. Na semana seguinte, comentou que visitara o filho na cadeia e lhe dissera que tudo seria diferente, ele se orgulharia dela, pois um sino a chamara para a vitória do presépio.

Sobre o Autor

Maria Cristina Castilho de Andrade: Cristina Castilho é professora de Português e agente das Pastorais da Mulher e a Carcerária. No trabalho com mulheres prostituídas e presidiários, circulou e circula pelo submundo, conhecendo sua realidade. Seu livro de crônicas conta a história das pessoas com quem se deparou no submundo do mundo. Escreve semanalmente no Jornal da Cidade de Jundiaí; mensalmente no Suplemento Estilo do Jornal de Jundiaí - Regional e, quinzenalmente, no Jornal de Abrantes - Portugal.

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