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LEANDRÃO
por Urda Alice Klueger
*
publicado em 18/12/2005.
Ele descera assim para os Estados do Sul no tempo do emprego farto, trazendo a sua juventude, a sua morenice e o seu porte de campeão olímpico, ele que era filho de uma mulata alta e de um italiano alto, ambos caldeados com os sangues daqueles árabes que lá no passado tinham dominado por tantos séculos o sul da Europa. Chamava-se Leandro de Assis, tinha documentos, beleza, fascínio e profissão, e quase dois metros de altura magra, e aquela luz nos olhos do rosto bonito que costumava deixar muita mulher doida.
Com uma delas se casou, uma alemoa toda branquinha, bem novinha, doçura de mulher, coisa de amor, lá no tempo em que o emprego era farto e seu nome estava escrito até em documentos, e ele ainda era um homem que fascinava muita mulher. Vieram as três crianças, Ralph, Erwin e Kátia, nomes conforme a mulher quis, que tinham a ver com a gente dela, e ele, ferramenteiro da grande fábrica, não via a hora de ir para casa e brincar de cavalinho com as crianças, e depois comer o aipim frito com toicinho e ovos que a mulher fazia, e mais tarde fazê-la gemer de prazer sob o seu corpo que tinha uma vitalidade magra, nervosa e persistente, como se cada pedacinho dos seus músculos e nervos fosse feito de elástico.
Um dia Ralph foi para a escola; no outro ano foi Erwin; logo estavam lendo juntos pequenos livros infantis, e ele lia alto, para os filhos e para a mulher, alguns romances sobre navios e mares, dos quais gostava desde pequeno. Sua alemoa aprovava aquelas leituras - ela estava bonita, as ancas largas, um pedaço de mulher para um homem como ele, que conquistara até o apelido de Leandrão. E o moreno Leandrão ainda tinha seu biscuit na vida, a pequenina Kátia de finos cabelos pixacos loiros, uma tetéia que mais parecia uma boneca, que no seu colo escutava as fantásticas histórias sobre os inimagináveis mares do sul, que nenhum deles sabia exatamente onde ficava.
Daí teve o momento que tudo começou a desmoronar. Uma coisa chamada Ganância, ou Neo-Liberalismo, ou talvez fosse o próprio Bicho Papão - como saber quando se tem poucas letras, pouco Conhecimento? - algo inexplicável, mandou embora da fábrica 400 empregados de uma vez só, entre eles o ferramenteiro Leandrão. Ele já andava pelos quarenta, idade difícil para se arrumar novo emprego, e a demissão não vinha sozinha.: até então eles tinham ocupado uma casa da empresa; era mister devolvê-la.
A princípio, houve o fundo de garantia, uma meia-água alugada, e o afundar as ruas da cidade atrás de outro emprego. Conforme o dinheiro foi minguando, a sua alemoa foi se mexendo pelo lado dela: pôs-se a fazer faxina em casas de gente remediada, onde ganhava os trocados para a comida, mas até emprego para faxineira andava faltando, pois aquele inexplicável Neo-Liberalismo (ou seria o Bicho Papão?) ia comendo a riqueza de todo o mundo, e já era bem pouca a gente que ainda podia pagar uma faxineira. O aipim frito, agora, já não tinha ovos; um certo dia já não teve mais toicinho.
Leandrão já voltara a se sentir mero Leandro, e quando tiveram que deixar a meia-água parecia que o seu nome se afinava cada vez mais, se finava. Acharam onde morar numa favela que existia por detrás de um dos morros que cercava a cidade que se dizia opípara, de primeiro mundo, cidade que a imprensa apresentava como a Europa Brasileira. Foram morar de favor num quartinho de um outro alguém que já tivera até apelido e agora mal e mal segurava o nome, e que, como ele, via as crianças murchando, a mulher perdendo o viço das ancas, eles próprios perdendo até o desejo por suas companheiras.
Era muito ruim viver assim, vendo o esforço das mulheres para alimentar aos da casa, e ao redor daquela casa (que não passava de um barraco), a situação se multiplicava em progressão geométrica, porque o tal do Bicho Papão (ou Neo-Liberalismo?) produzia sempre mais excluídos, e o que restava aos excluídos?
Leandro e o amigo, que ainda também conservava o nome de Bento, acharam que tinham que fazer alguma coisa. Ouviram falar que na cidade tal havia emprego para muita gente - os dois, em conjunto, possuíam uma única bicicleta, e um carregando o outro, saíram em viagem, atrás do emprego que traria o resgate pelo menos da magreza do rosto emaciado das crianças, levando pobre farnel e umas coisinhas de vestir. No mínimo, saindo, deixavam de comer o que comiam em casa, deixavam mais comida para as crianças.
Lá na outra região também não havia emprego - vasculharam-na toda, e chegou um momento em que venderam a bicicleta por uns trocados para não morrer de fome. Então Bento, que ainda se chamava Bento e ainda tinha documento, arranjou muita tosse e febre, e a caridade de um município internou-o num hospital, e Leandro, o que estava com o nome já fininho, continuou sua sina à pé. De uma certa forma, alegrava-se por Bento, que no hospital teria o que comer. Deu referência no hospital, disse onde Bento morava - decerto alguém comunicaria à família de Bento o que se passava, já que o homem que já estava quase sem nome não tinha nenhum jeito de avisar à gente do amigo o que se passava.
E a vida correu, e Leandro ainda tinha documento, mas já ninguém o chamava pelo nome. Estava sujo, barbudo, o cabelo comprido, mais parecendo um malfeitor do que um ferramenteiro que procurava emprego desesperadamente. Um dia ele se olhou na vitrine de uma loja, e viu que já ninguém daria emprego a um homem de quase dois metros de altura com a aparência dele. Foi nesse dia que os seus ombros se vergaram de desesperança, e ele sentou na calçada e chorou. Mas veio um policial e mandou que saísse dali, pois estava enfeando aquela cidade.
Agora a vida já não tinha mais sentido, e ele estava com tanta febre! Quanto tempo que fazia que deixara Bento para trás? Semanas, meses? E a sua alemoa, e a pequena Kátia magrinha e de olhos arregalados? E os meninos? E o seu apelido de Leandrão? E os seus documentos, que ficaram perdidos no bolso de um casaco que ele abandonara ao correr de um cachorro feroz, pois de novo uma mulher pensara que ele fosse um malfeitor, quando ele apenas queria pedir um pouco de água para encher a sua garrafa de plástico? Há quantos dias não comia? Dois, três, quatro? E a água, que tomara toda a que tinha na garrafa quando a febre começara? Ele sabia de onde vinha a febre - vinha das fomes acumuladas, da magreza enorme, da noite ao relento sob uma garoazinha fria, dias antes, quando não conseguira chegar a lugar algum quando a noite desceu, bem agora que já não tinha casaco. Ele tinha febre, mas se reacendera uma esperança: vira a quantidade de carros e de ônibus que haviam passado rumo ao sul, desde dias antes, com adesivos e faixas onde dizia: "Um mundo melhor é possível"! Sim, o mundo não podia ser aquele onde ele vivia, um mundo melhor teria que ser possível. E então, atrás dos que passavam, ele tomara o rumo do sul, e fazia dias que caminhava acompanhado da febre, da sede e da fome, pois se havia um lugar onde um mundo melhor era possível, era lá que ele queria chegar!
E caminhara, e caminhara, e a febre ficara tão grande naquele anoitecer que ele soube que já não poderia mais viver se não conseguisse ajuda, ou ao menos água. Estava à beira de uma estrada, e havia uma grande rampa que descia para algum lugar. Se conseguisse descer a rampa ...! Quando há rampas, é porque lá embaixo há água, alguma nascente, alguma poça de água de chuva.
E no escuro da noite ele desceu, mas aquela era uma rampa que não levava a nenhuma água - era apenas um buraco que fora cavado no meio de um entrecruzar de rodovias. E quando lá embaixo, sem ajuda, sem a ansiada água, o homem entrou em delírio. A febre o consumia, o deixava desesperado de calor, e ele se arranhava pelo corpo sujo tamanha era a sua agonia, e foi-se livrando das roupas na tentativa de conseguir algum alívio para o horroroso delírio queimante que a febre trazia - e de alguma forma a manhã encontrou-o ainda vivo, mas nu e inerme lá no cruzamento das rodovias, incapaz de esboçar qualquer reação, de fazer qualquer coisa para tentar salvar a própria vida que ia se esvaindo. Um jovem executivo destes que o novo Sistema vinha formando o viu, lá no fundo do buraco e usou seu telefone celular e avisou à polícia que tinha alguém abandonado lá no buraco, que aquilo não ficava bem para a beleza e a fama do seu Estado.
Realmente, a poucos quilômetros mais ao sul, numa grande cidade, cerca de 140.000 pessoas de todos os países, línguas e etnias haviam se reunido porque acreditavam que "um mundo melhor é possível". Durante dias tinham discutido o assunto, mas agora a reunião terminara. Num dos carros que voltava, algumas pessoas tinham tomado um rumo um pouquinho errado numa rodovia, e agora acertavam seu caminho passando exatamente em torno daquele buraco onde o homem que já não tinha mais nada a não ser um fiapo de vida amanhecera. Lá estava parado um camburão de polícia, e enquanto esperavam a vez de entrarem na rodovia certa, as pessoas do automóvel viram como os policiais, com o homem nu grotescamente algemado com os braços nas costas, carregavam-no barranco acima com o desleixo e a postura de quem pensa: "Vagabundo! Como é que aparecem esses caras aí para incomodar a gente já de manhã? E nu, ainda por cima! Tomara que se quebre todo até a gente subir o barranco inteiro!"
Estáticos, os que acreditavam que "um mundo melhor é possível", quedaram-se inertes, sem saber o que fazer, sem tomar nenhuma atitude, e quando o trânsito abriu para eles, seguiram viagem sem terem feito nada, e só muito depois é que se deram conta de que poderiam ter ido lá ajudar, que talvez tivessem salvo aquele homem. Mas aí já era tarde, já estavam longe. Mas eles nunca esqueceriam.
E o pai de família Leandro de Assis, conhecido como Leandrão, de profissão ferramenteiro, que tinha documentos, uma alemoa e crianças, o que aconteceu com ele?
Não é difícil saber. Após terem desmontado seus ombros e seus braços com a brutalidade com que o carregaram, o Policial A auscultou-lhe o peito e sentiu sua pulsação.
- Está por pouco! - garantiu. - É bobagem levar gente assim para o hospital. E ainda por cima, nem bem branco é!
- Joga aí atrás! - recomendou o Policial B, e no fundo do camburão, os braços invalidados pelas algemas, o homem sofreu o seu Destino: o Policial C saiu em alta velocidade, sirene aberta, a fazer as curvas mais fechadas possíveis, provocando graves pancadas na cabeça inerme dele, quando era jogado contra as paredes reforçadas do camburão. Quando os policiais chegaram na delegacia, muito calmamente avisaram:
- Mandem alguém tirar um morto aí de trás, que achamos na beira da estrada.
O homem tivera tudo, mas agora já nem homem mais era. Seu destino se cumprira. Sua família nunca saberia o que lhe acontecera.
Sobre o Autor
Urda Alice Klueger: Escritora catarinense de Blumenau, onde vive e trabalha. Publicou inúmeros livros, entre eles "Entre condores e lhamas" e "Crônicas de Natal"http://geocities.yahoo.com.br/prosapoesiaecia/urdaautores.htm
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