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DELÍRIOS DE GRANDEZA

por Miguel Sanches Neto *
publicado em 17/12/2005.

Minha tia-avó sempre dizia que não podíamos ser como os demais, porque descendíamos de nobres espanhóis. Minha irmã e eu ríamos muito de tal crença e esta frase acabou sendo um código entre nós. Diante de qualquer situação subalterna, um lembrava para o outro de nossa risível nobreza.

Não conhecemos nosso avô, o tal que me deixou como herança o nome. Ele faleceu muito jovem, mas seus três irmãos fizeram-se presentes em nossa vida. Agricultores expulsos de várias cidades pela urgência de ganhar o pão em novas fronteiras de café, eles passaram a juventude no trabalho agrícola e a vida madura em pequenos empregos. Durante nossa infância, eles viviam situações econômicas muito precárias. Tio José trabalhava num sanatório. Tio Antônio vivia de aposentadoria e habitava num quartinho sórdido. Tia Tereza morava com a filha. Mas nenhum deles abria mão desse fictício passado glorioso. E, como legítimos nobres, preocupavam-se com o sangue que corria em nossas veias, embora fôssemos tão pobres. Não aceitavam, por exemplo, que chamássemos os dois filhos de nosso padrasto de irmãos, alegando que não tinham o nosso Sangue. Pelo tom de voz, sabíamos que esta palavra tinha que ser grafada com maiúscula.

Em meados dos anos 80, tio José, já bastante idoso, mas ainda trabalhando, ganhou na loto uma fortuna considerável para o franciscano solteirão. Foi então que ele teve chance de fazer jus ao nosso passado. Construiu algumas casas senhoriais, comprou um automóvel de luxo, e, num estilo absolutamente liberal, distribuiu dinheiro para todos, menos para minha irmã e para mim – nós não pedimos, já movidos por uma descomunal altivez.

Ele chegou ao absurdo de dar de presente para os patrões, que sempre o exploraram, uns cavalos de raça. Aos domingos, ele se responsabilizava pela refeição da ex-patroa, não em condição inferior, mas no papel de abonado provedor.

Tio Antônio, já meio fora da realidade, ganhou novo alento. Desde que o irmão ficou rico, aboliu de seu cardápio o pão, realizando um velho sonho: só comeu panetone até o dia de sua morte. Havia na casa nova uma geladeira só para ele, com frutas importadas e outras coisas que não podiam ser apreciadas pelos mortais. Depois do almoço, convocava um dos parentes, que devia levá-lo para uma volta de carro. Não queria ir a lugar nenhum nem espairecer olhando a paisagem. Entrava no carro, ligava o ar-condicionado e dormia. Passou a fazer a milenar sesta espanhola em trânsito, distante da rotina doméstica. Gastou os últimos anos como um legítimo nobre, levando-nos a crer realmente nesta fidalguia pretérita, que tinha permanecido latente até que surgissem condições materiais para que ela aflorasse.

Tio José acabou morrendo pobre, explorado pela empregada que cuidou dele nos derradeiros momentos. Os nobres realmente não podem confiar nas classes subalternas. Mas o curto instante de riqueza serviu para confirmar nossas origens, sobre as quais nunca tive curiosidade.

Não busquei saber em que ano meus antepassados chegaram ao Brasil, nunca pude definir com precisão nomes de lugares e de pessoas com os quais tínhamos vínculos, sequer pensei na possibilidade de solicitar cidadania espanhola. Eu me senti sempre parte de uma família de agricultores brasileiros, sem a típica idolatria por um passado que não deve ter sido lá grande coisa.

Mas acabei ganhando a edição fac-similar da “Árvore Genealógica da Espanha”, feita, em 1948, pelo professor espanhol Francisco Rodríguez Fernández. Pude assim comprovar que, realmente, a família Sánchez (Sancho) localiza-se em um dos ramos centrais da nobreza espanhola. Os Sánchez aparecem na época da busca da Unidade Nacional. Nossos antepassados pertenciam ao Reino de Navarra (718), que nos deu Garcia Sánchez I e II, Sancho II e III, este dito el mayor, além de outras derivações sangüíneas.

Figuram também no Condado de Castilla (923-1029), em cujo seio há um Garcia Sánchez e um Sancho Garcia, representantes deste ramo que, unido ao Reino de Leon (914-1037), formou o Reino de Castilla y Leon (1037-1157), momento em que floresceu Sancho II, el fuerte.

A partir destes dois ramos é que se constituiu a monarquia que ainda hoje impera em terras de Espanha. E é dela que, mui modestamente, nós descendemos, segundo a tradição heráldica de meus pobres tios.

Está aí a justificativa para nosso um orgulho sem precedentes. Nunca nos rebaixamos, não pedimos emprestado nem gostamos de revelar qualquer forma de dependência. Donos de uma alta auto-estima, mesmo quando estamos completamente desprestigiados pelos deuses, nós exibimos nosso porte real, seguindo surdos ao clamor da necessidade e levando uma vida sem concessões. Isso acaba irritando as pessoas, que tomam nossa auto-suficiência como afronta. Não somos assim porque queremos, é de nossa natureza. Quem tem como antepassado alguém que se intitula el mayor não pode se curvar às vicissitudes da existência chã. Não exijam, pois, que tenhamos vida gregária, que gostemos de festas, que comentemos a novela das oito, porque isso é impossível para nós. Somos assinalados, não vivemos o tempo comum...

Quando estou assim, totalmente contaminado pelos delírios de grandeza de meus tios-avós, lembro-me de um episódio auto-desmitificador. Um amigo me falava de seus antepassados europeus, todos logicamente nobres – o Brasil, pelo jeito, foi colonizado apenas por aristocratas. Depois de ouvir o elogio de suas raízes, eu poderia fazer o mesmo, enaltecendo estes tão distintos Sánchez. Mas daí me veio a consciência do ridículo: somos descendentes de colonos expulsos da Europa pela miséria absoluta e vivemos tentando inventar uma ascendência prestigiosa. Então disse para o amigo que ele não me fazia inveja. Em todos os filmes de bangue-bangue, o bandido era sempre um mexicano chamado Sánchez.

Não pode haver prestígio maior do que descender de bandidos nestes tempos atuais. Aí está nossa verdadeira nobreza. Ainda que sem direito a panetone todos os dias.

Sobre o Autor

Miguel Sanches Neto: Escritor paranaense e crítico literário, assinando coluna semanal no maior diário do Paraná, a Gazeta Povo (Curitiba), tendo publicado só neste jornal mais de 350 artigos sobre literatura, fora as contribuições para outros veículos, como República e Bravo!, O Estado de São Paulo, Jornal da Tarde (São Paulo) e Poesia Sempre e Jornal do Brasil (Rio de Janeiro).

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