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Impurezas amorosas
por Miguel Sanches Neto
*
publicado em 04/12/2005.
Socorrido por uma velha que morava num casebre torto de madeira, tive o ferimento coberto por pó de café, para estancar o sangue. E, me arrastando pela rua empoeirada, voltei para casa. No hospital, o médico teve que lavar o corte com escova, e nunca parava de sair o pó preto, até que enfim se pôde costurar os beiços abertos com vários pontos, me fazendo lembrar de um dos pratos mais deliciosos daquele tempo – o bucho de porco recheado, especialidade mineira de minha mãe.
Com a carne moída, a mesma usada para a lingüiça caseira, ela enchia um bucho de porco, que antes havia sido lavado com água de limão, para que perdesse sua viscosidade. Depois, ela fechava a abertura do bucho com as linhas e agulha usadas em sua atividade de costureira e fritava aquela bola de carne no tacho, durante algumas horas, para que a comêssemos grossas fatias desta que até hoje é minha comida predileta, embora há décadas eu não mais a experimente.
Acabaram-se os porcos criados nos quintais. Acabaram-se ainda os próprios quintais tais como eles eram: versão mínima da chácara, com chiqueiros, galinheiros, pés de fruta, pequena roça de milho, mandiocal, horta e um rego de água correndo do tanque para as árvores. Acabaram-se também alguns prazeres que só estes quintais parentes da roça nos davam.
Se éramos meninos criados soltos, em contato com o mundo, pés descalços e apenas um calção feito em casa, para ir às aulas vestíamos um uniforme com camisa branca e colocávamos nos pés incômodas Congas, sem o aconchego de meias. Assim, os meninos livres viravam estudantes comportados, que deviam aprender alguma coisa para logo arrumar emprego.
Neste outro espaço, o da escola, ainda trazíamos alguns vícios da rua e de nossos quintais. Estávamos sempre cultivando com a devoção de fiéis agricultores um bicho-de-pé pessoal e intransferível, que era nosso mais íntimo pertence. Ao descobrir o bicho, muitas vezes ainda uma mínima pulga preta, encravando em nossa pele, passávamos a tratá-lo com carinho e desvelo.
No meio da aula, sentíamos a coceira deliciosa nos dedos, os pés suados dentro das Congas sofriam comichões, então apertávamos os dedos, pisando com força o chão, sentindo um prazer estranho, que corria dos pés para outros endereços. Quando isto se tornava realmente insuportável, pedíamos licença à professora para uma viagem rápida ao banheiro.
Lá, trancados no reservado, sentávamos no vaso, tirando avidamente os calçados para coçar com desespero a região invadida. A pele estava amarela, o pé inchado e, reluzente, aparecia a moranga, que não deixávamos ninguém tirar, cultivando-a como quem cuida de um campo. Coçar e coçar, até que a vertigem se dissipasse. Dedos apertados pelas Congas, voltávamos para a sala, o rosto estampando uma indizível satisfação.
Em casa, não sentíamos a presença do invasor, mas na escola, por causa dos calçados, ele nos atormentava. Quando um bicho se fazia imenso, passando da fase da coceira insana para a da dor, já havíamos contraído outro. Chegava a hora de retirar a velha moranga.
A agulha de costura da mãe era desinfetada com álcool e, vergados sobre as próprias patas, nós nos ocupávamos com a lenta escavação em torno da moranga. Fazia parte do ritual não estourar sua bolsa, ir abrindo a pele e a carne ao seu redor, para sacá-la intacta na ponta da agulha, sinal de destreza, de respeito à bem-amada, que tinha nos dado tantos momentos de volúpia. Como arremate da operação caseira, molhávamos com álcool a mínima cratera, sentindo os derradeiros arrepios. Mas já trazíamos outro bicho, engordando-o carinhosamente, como quem alimenta um porco doméstico com os restos de comida da própria mesa.
De todos estes bichos queridos, não sobrou nenhum sinal em meus pés. Mas lá está a cicatriz do corte com o caco de vidro, para provar que eu fui sim aquele menino, planta crescida com a força das abóboras que brotavam onde jogávamos o lixo, alastrando-se por todo o terreiro.
Com o tempo, a prefeitura proibiu a criação de porcos e outros animais no perímetro urbano, os quintais se higienizaram, e nós também. Já não andávamos descalços, a escola nos ensinara alguns modos, agora não saíamos sem camisa e enfim ganháramos verdadeiros sapatos.
Quando recebi os primeiros quedes, era assim que chamávamos os tênis, já não me interessava mais cultivar amorosamente uma moranga. Estávamos atentos às meninas da escola, e era pensando nelas que agora nos trancávamos no banheiro. Para impressioná-las, tentávamos andar bem-vestidos, começando a fazer a barba, mais para aplainar a cara cheia de espinhas do que para limpá-la da penugem nascente. As meninas nos deixavam doentes, amarelos, olhos perdidos na parede da sala, estudando uma mancha, um risco, uma trinca. Quase nada aprendíamos, sonhadores, sem saber ainda como lidar com este outro parasita, o amor, que se encravava em nosso peito, não podia ser tirado e produzia uma coceira insuportável na alma.
Quanto aos bichos-de-pé, já éramos impuros demais para merecê-los.
Sobre o Autor
Miguel Sanches Neto: Escritor paranaense e crítico literário, assinando coluna semanal no maior diário do Paraná, a Gazeta Povo (Curitiba), tendo publicado só neste jornal mais de 350 artigos sobre literatura, fora as contribuições para outros veículos, como República e Bravo!, O Estado de São Paulo, Jornal da Tarde (São Paulo) e Poesia Sempre e Jornal do Brasil (Rio de Janeiro).< ÚLTIMA PUBLICAÇÃO | TODAS | PRÓXIMA>
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