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Bichos do Poder

por Airo Zamoner *
publicado em 04/12/2005.

Hoje, precisei ir ao Edifício do Poder para resolver um problema com impostos. Terei que voltar. Nunca soube de alguém que tenha resolvido um problema desses na primeira visita.

O Edifício do Poder tem uma praça em frente e a praça tem um banco. Lá fui eu, procurar um descanso e talvez um papo animado. Dessa vez, ninguém sentou a meu lado. Fiquei olhando a entrada do majestoso Edifício. Pessoas entravam, pessoas saíam. Não sei se entravam e saíam do poder, ou só do palácio. O dia estava maravilhoso. Um sol matinal suave. Não queimava, aquecia. Não ofuscava, brilhava. Batia no gramado e dava ao verde, reflexos amarelados. Senti um pouco de símbolo nacional naquele chão verde e amarelo.

Não sei como, nem porquê, repentinamente, não vi mais nenhuma pessoa em volta. Tudo estava absolutamente deserto. Até achei que o tempo havia passado sem meu consentimento. Quis me levantar para olhar melhor em volta. Não consegui. Só conseguia olhar para a entrada do palácio. Meu pescoço estava imobilizado. Não sentia desconforto, porém.

No deserto de gente, vi chegar devagarinho um porco. Não se assustem! Era mesmo um porco. Branco, bem tratado. Limpinho. Parecia até cheirar bem. O porco foi se aproximando da Porta do Poder. Parou um pouquinho no começo da escadaria. Ajustou as patas para dar início à subida. Entrou como se ali fosse seu próprio chiqueiro. Ninguém mais por perto. Só o porco entrando. Eu ali. O porco lá dentro. O sol me aquecendo.

Quebrando a lógica humana, aproximou-se outro bicho. Por meus parcos conhecimentos zoológicos, era uma hiena. Aquele bicho que come excrementos o dia inteiro e ri! Gargalha, come, ri e ri cada vez mais. Ela já chegou nas escadarias rindo, quebrando o intrigante silêncio em volta. Pensei que talvez estivesse entrando para se alimentar, certa de que ali haveria sua iguaria predileta. Nos Palácios do Poder as iguarias abundam, ela devia pensar.

Um pequeno grupo começou a se aproximar do palácio. Imaginei que uma Sessão do Poder estaria por começar. Eram três que subiam as marmóreas escadarias. Vinham num papo animadíssimo. Eu não conseguia entender o que falavam, pois falavam suas línguas nativas. Apenas pude identificar que era um rato, um gato e uma raposa. O incrível é que eram todos do mesmo tamanho! Nunca pensei poder ver um rato tão grande! Como poderiam aqueles três estar se dando tão bem?
O gato, o rato e a raposa não eram bichos quaisquer. Estavam muito bem vestidos. Roupa de gala. Esquisito ver esses bichos vestidos... Tão bem vestidos.

Esfreguei meus olhos várias vezes. Belisquei meus braços. A dor foi a prova. A realidade estava ali na minha frente. Enxergava tudo muito claro. O pior, é que eu era a única testemunha. Se contasse, não iriam acreditar. O fato concreto, contudo, estava em minha cara. O porco e a hiena haviam entrado no Palácio do Poder. E agora os três amigos... O gato, o rato e a raposa!

Absorto em minha perplexidade, ouvi um barulho surdo e forte. Barulho ritmado. Tão forte que sentia tremer o chão. Sentia aquela vibração fina no banco de concreto. Algo vinha vindo e estava fora de meu campo de visão.

Repentinamente, uma enorme sombra apareceu, cobrindo as escadarias. Apagando o verde do gramado e o amarelo do sol. Apagando nossas cores. Um bicho gigantesco que eu só vira em desenhos de enciclopédias ilustradas estava ali, vivinho, subindo aquela escadaria. Um dinossauro em pessoa.... ou melhor, um dinossauro em bicho. Queria tanto ter uma filmadora, ou máquina fotográfica! Teria provas do que estava vendo. Ele abaixou sua cabeça e pescoço. Enfiou-se pela Porta do Poder. O rabo demorou, raspando nas escadarias, até sumir lá para dentro.

Eu continuava de pescoço endurecido, sem poder me virar.
Um grande silêncio se fez. Ninguém mais se aproximou. A Porta do Poder estava fechando. Como se fosse pesquisar se mais algum bicho estaria chegando, uma cabeça apareceu espiando. Cabeça cabeluda. Um leão. Antes que ele fechasse completamente as enormes portas, meu pescoço se livrou das invisíveis amarras. Leve novamente, ouvi uma sinfonia de latidos vindo de longe. Ao me virar, vi uma multidão de cães de todas as raças. Uma quantidade imensa de cães, vestidos como se povo fossem. Sabiam exatamente aonde ir.

Subiram as escadarias. As portas foram empurradas para dentro, abrindo largamente a boca do palácio, como se um sorriso imenso ali se esboçasse. Entraram os cães. Eram tantos! Os latidos lá dentro se misturaram com as vozes de todos aqueles outros bichos.

Segundos depois, um tropel ensurdecedor escadaria abaixo. O porco na frente, desengonçado, roupa de gala rasgada, seguido pela hiena, raposa, rato, gato. O dinossauro, enroscando-se pelas margens no desespero de sair. O leão, com o rabo entre as pernas. Os cães, atrás deles. Latiam sem parar. Atravessaram a praça. Desapareceram. Embasbacado, consegui ainda ouvir ao longe os latidos sumindo.

Tudo voltou ao normal. As pessoas estavam novamente indo e vindo em minha volta. O alarido parecia que nem tinha se ausentado. Levantei-me satisfeito da vida. Quis ir para casa logo, livrando-me do porco, da hiena, da raposa, do rato, do gato, do dinossauro, do leão. No caminho, fui imaginando um jeito de me transformar num cão, junto com todos vocês.

Sobre o Autor

Airo Zamoner: Airo Zamoner nasceu em Joaçaba, Santa Catarina, criou-se no Paraná e vive em Curitiba. É atualmente cronista do jornal O ESTADO DO PARANÁ e outros periódicos nacionais. Suas crônicas são densas de conteúdo sócio-político, de crítica instigante e bem humorada. Divide sua atividade literária entre o romance juvenil, o conto e a crônica, tendo conquistado inúmeros prêmios e honrosas citações.

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