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Divagar
por Terezinha Pereira
*
publicado em 10/09/2008.
Quem sou eu? Mesmo a esperar, que não fui a primeira argüida, ouvi a pergunta como se vinda de supetão. “Pergunte-se: quem sou eu? Diga seu nome. Tome posse de seu nome. Quem lhe deu o seu nome, por que razão? O que sabe de seu nome?”.
Após cismas, engasgos, vem o momento de cada um ouvir o seu nome. Ouvir o meu nome..... Vozes diversas o repetiriam. “Cada um dirá de vários modos o nome do outro. Serão várias as vibrações sonoras de algo que você ouve desde o nascer.”
No chão, acomodada na maciez de uma dezena de almofadas _ creio _ manta macia a cobrir-me todo o corpo, olhos fechados, ouvi meu nome dito por outros que contam histórias. Marina. Má-rina! Marina? Mariiiiina. Marina....., Má-rí-naaa Mrina. Maaaarina. Ma-ri-na! Ressonâncias diversas. Ora mansas, ora ternas, aos sussurros, ora indagadas, severas, raivosas, sob censura ........
Vi-me em caminho oposto ao tempo hoje. Como me tornei a Marina que hoje sou. Quem sou eu? Ao jardim de infância, foi aonde primeiro cheguei. Branca de Neve era o nome da escolinha. Nome de história. Teria o eu (meu) nascido num ouvir histórias? Aquela escola havia sido feita a meus moldes, projetada para mim? A mestra era tratada senhora, dona fulana de tal. Então, veio-me seu semblante, seu sorriso e seu jeito seguro e afortunado de manejar as letras.........
Poucos foram os meses despendidos no brincar com elas, no desvendar os sons que representavam ao juntá-las umas às outras. A seguir, veio o momento de inferir o que, alinhadas, queriam as letras nos dizer. Logo, logo, os códigos estavam decifrados. Tornou-se fácil captar, num livro sem gravuras, por inteiro, o conto “Branca de Neve”. Um pulo.
Deparei-me com a primeira mestra em diversas épocas de minha vida. Até mesmo como, mais uma vez, a minha mestra. Seu sorriso, de sempre havia sido de gente contente. Pessoa satisfeita com os próprios feitos. Não era para ter-se ido tão moça, para outra dimensão. Se tanto conhecer tinha ela a partilhar.
Sei que fiquei sentida. Alguns de meus irmãos, a quarta e o quinto........ esses não chegaram a conhecer um jardim de infância. O meu jardim durara tão pouco........ Como havia sido bom chegar ao curso primário e ir logo decifrando o Livro de Lili. Olhem para mim........ Para esses irmãos foi de pouca riqueza.
Não sei como os companheiros de contar histórias me olhavam enquanto vocalizavam meu nome. Eu ali deitada, sentia-os próximos. Podia-lhes ouvir o respirar. No entanto..... Pareciam estar a alguns anos luz de distância.
Um irmão, o sexto dos oito, pôde freqüentar uma escolinha por alguns poucos meses. Sentir o gostinho do bom. Uma escola para pequeninos havia sido criada sem ter onde se instalar. Começou a cumprir sua nobre missão num salão paroquial. As salas de aulas eram separadas por lonas de algodão cru. Foi assim, até que o prédio próprio, quase no centro comercial da cidade, ficasse pronto.
Ainda hoje, cumpre bem a sua função de alegrar crianças do pré-escolar, fazê-las desvendar a magia das letras, dos números. Levar esse irmão ao jardim de infância era tarefa de meu maior gosto. Quando o deixava com a professora, saía devagar. Como era bom observar a feliz entrada das crianças. Como um reviver a minha primeira estada numa escola.
Recordo........ quando o prédio do novo jardim foi inaugurado, muitos pais, lá, não quiseram matricular seus meninos de cinco, seis anos, mesmos cientes de que não teriam de pagar mensalidade, que a nova escola de pré-escolar era do governo. O único trabalho para os pais seria o de levar e buscar as crianças. Naquele tempo, criança quando entrava para o primário, já ia para as aulas sem companhia de gente grande. Mas, os de cinco, seis anos, não tinham o costume de andarem a sós pelas ruas.
Na verdade, parece-me, que a questão era outra. Diziam. Diziam que o lugar era mal assombrado. A causa? O jardim de infância fora construído no terreno onde havia sido o Cemitério Velho. Muitos pais sentiam-se indignados. Aquele não era um bom lugar para se erguer uma escola para crianças.
Achava era graça naquela controvérsia. Minha mãe também. Nem questionou o passado do terreno onde foi construída a escola. Na idade devida, lá foi ela com a sétima e a oitava filha. Como ficavam lindas com o uniforme de xadrezinho branco e azul!
Lembro-me bem do Cemitério Velho. Uma quadra inteira, próxima de onde eu passara minha vida de menina. Havia caminhado pelas bandas do cemitério inúmeras vezes. Tanto de dia como de noite. De dia, até desacompanhada, mas às vezes, junto com a avó materna, outras vezes com a mãe, primos ou irmãos.
Juntos, costumávamos a nos aproximar dos portões de grade enferrujada da antiga casa dos mortos. De lá, ficávamos a olhar a parte interna daquele descampado com diversos caminhos de terra fofa a cercar as quadras onde ficavam os túmulos. E sobras de abóboras e mamões verdes. Enfumaçados. A maioria das sepulturas era só a casca, pois os ossos dos primeiros moradores de Vila do Pará já haviam sido trasladados para o novo cemitério.
Quando passávamos por aqueles lados, de noite, fazíamos o danado de um esforço para avistar alguma assombração. Era como se quiséssemos ter fama por havermos visto algo do outro mundo. Posso dizer, que em minha vida toda, de assombrações, só vi abóboras ou mamões desmiolados, esculpidos como caveiras, velas a tremular por dentro. Alguns da vizinhança _ dizem que era gente grande _ ao escurecer, pulavam os muros e ficavam do lado de dentro do cemitério. Na penumbra, punham as caveiras sobre os muros e voltavam para suas casas, de onde ficavam a espiar pelas gretas de suas janelas. Passavam o começo das noites a rir dos que se assombravam e saíam às carreiras pelas ruas afora.
Um de meus irmãos, mesmo estando certo de que os fantasmas eram invenção das gentes, era um que se desembestava. Se já havíamos visto restos desses fantasmas algum clarear do dia..., ter medo de quê? Ah! O irmão corria desatinado e nós, os outros........ Faltava-nos só o morrer de rir. Hoje, de cabelos brancos, ela afirma que, o que via, era assombração mesmo. Ele também jura de pés juntos que já viu disco voador. UFO! Eu nunca vi. Disco voador, só o prédio do MAC _ Museu Arte Contemporânea Moderna em Niterói. Do Niemeyer. Coisa de outro mundo mesmo.
Passado um tempo de vozes, notei que um silêncio me cercava. Meu nome, só ouvia como um sopro. Conforme o que a douta contadora de histórias dissera no início do curso, ao ouvir o silêncio, chegada era a hora de sair do seu aconchego. Quisera permanecer daquele jeito mais um pouco. Encontraria um pedaço de meu genuíno eu, sem desgastes nem crostas do tempo, caso buscasse nas minhas lembranças da escola primária? Podia ser.
Naquela modorra, lembro-me que vi, com certa nitidez, o semblante sereno de uma de minhas mestras, cabeça branca, pele lisa, coração abundante, a dizer “era uma vez...” Era uma vez ..... assombrações que apareciam na calada da noite. Algumas eram sombras. Outras eram pessoas que vinham para assombrar e algumas, as que se assombravam. Por lazer. E eu ria de pensar no riso desses.
Hoje, tenho medo de assombração. Existem. De carne, osso e arma na mão. E não precisa do escuro da noite. Costumo lembrar-me daquela mestra. Foi quem me fez ver que ler rima com prazer; ela e meu pai, que costumava trazer livros de histórias para casa. Páginas brancas, cheias de letras miúdas para o tamanho do nosso conhecer. Um desenho único na capa, ou só o título. Se ilustração havia nas histórias eram de preto no branco. Depois de Lili, vieram "As mais belas histórias". Quatro anos de histórias, das mais belas.
Devagar, a mestra do reino das fadas me interpela. Como sentiu o seu nome? É seu este nome. É seu. Está no seu eu. E eu, ainda a divagar.
Sobre o Autor
Terezinha Pereira: Terezinha Pereira é romancista, contista, cronista, graduada em Letras, membro da Academia de Letras de Pará de MinasPublicações:
_ "Em confidência", romance publicado pela Mazza Editora, Belo Horizonte, 2000, premiado em concursos literários realizados no Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e Minas Gerais;
_ "Uma pianista numa noite branca..." , Caderno Literário de contos, 2004, pela Academia de Letras de Pará de Minas em parceria com o Jornal Diário;
_ Contos, na "Revista da Academia Mineira de Letras" (4 revistas);
_ Artigo, projeto de estudo do livro "Dom Quixote" para alunos de 8ª série do Ensino Fundamental, publicado na revista "Presença Pedagógica", de setembro/2005;
_ JB Online, Café Literário: Colunista da Semana, 23 a 29/11/2005.
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