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Depois do Jeová e do Alá, o novo deus, o 0800.
por Urda Alice Klueger
*
publicado em 31/08/2005.
- O problema não é aqui. É na empresa telefônica que fornece a linha.
Só para os leigos saberem: há diversos meios de se estar conectados à Internet, e um deles chama-se web-mail, e no meu caso, é fornecido pela empresa telefônica chamada GVT.
Eu tenho uma linha telefônica GVT e uma linha de Internet GVT porque tal empresa costuma ser mais honesta do que outra que me servia antes, pelo menos nos preços, e, na medida do possível, costumava me atender bem. Então, ainda sem prever o desastre do meu dia, eu liguei para a o nº 0800 da GVT, e ouvi todas aquelas instruções: “Se você quer comprar uma linha, aperte a tecla 1; se quer saber da sua conta; aperte a tecla 2", e assim por diante, até chegar à tecla 9, que era a que me cabia.
Tadinha da moça que me atendeu, e de todas as outras moças e moços que me atenderam depois:
- Fulana de tal, bom dia! Em que posso ajudá-la?
Contei meu caso, certa que dali a pouquinho a coisa estaria resolvida e eu poderia trabalhar como queria na única manhã livre que teria na semana para tratar das minhas coisas pessoais. A tadinha da moça me passou para um tadinho de um moço, e quando falo em tadinhos, não quer dizer que esteja a depreciá-los: estou é querendo dizer que são grandes vítimas de um Monstro chamado Capitalismo, que lhes paga um salariozinho de fome, lhes faz decorar algumas frases sempre iguais, lhes obriga a não cometerem nenhum ato de piedade ou de humanidade e lhes faz a aturar todos os estresses que o tal Capitalismo lança sobre os consumidores dos seus produtos. No caso da GVT não é diferente.
Com a gentileza que são obrigados a terem para não serem colocados no olho da rua e serem incorporados às multidões de excluídos que o Capitalismo vem formando, sempre maior multidão destinada à morte pela desassistência e pela fome, aquelas pessoas fizeram o que podiam por mim e me disseram que teriam que me mandar um técnico, pois meu caso era mais complicado.
Tudo teria se resolvido bem se então eles tivessem me dito:
- Olha, vou abrir o chamado técnico, e na hora tal ele estará aí.
Infelizmente, as pobres vítimas do Capitalismo só podem repetir frases sempre imutáveis:
- O técnico irá em 24 horas. Se você tiver um problema real, a empresa nada lhe cobrará; se seu problema for imaginário ser-lhe-á cobrada uma taxa de 25,00.
Tudo bem se eu fosse pacata dona de casa, destinada às novelas da tarde e da noite e aos afazeres da cozinha, mas não sou: deveria sair de casa antes do meio dia para voltar lá pelas dez da noite. Expliquei isto para o tadinho ou tadinha, já não lembro mais - desculpem os tadinhos, chamo-os assim, como já disse, pois consigo vê-los como as vítimas do Capitalismo que são.
Na fraseologia obrigatória, eles me repetiram o que já haviam dito, sobre as 24 horas, etc., e disseram que anotariam no meu pedido para o técnico agendar horário. Como eu muito insistisse, disseram que avisariam com rapidez.
Teria sido uma beleza se dali a alguns minutos o técnico me ligasse e combinasse:
- "Ah! Amanhã cedo? Ok, estarei aí!" - e então eu poderia ir cuidar da minha vida, procurar um café cibernético para trabalhar ou algo assim.
Como se passou muito tempo, eu fui ficando cada vez mais nervosa, e liguei de novo para a GVT. Tive que esperar até a opção 9 do 0800, tive que explicar tudo
de novo, e esclarecer que tudo o que queria era o número do telefone do técnico, para poder combinar uma agenda com ele.
Que será que aconteceu aí? Penso que estava pelas nove da manhã - por mais de duas horas fiquei tentando conseguir o telefone do técnico junto daqueles rapazes e moças que suportam todos os estresses que o Capitalismo que os emprega os faz suportar pela incompetência do próprio Capitalismo de gerir uma empresa com eficiência, tratando seus clientes como seres humanos devem ser tratados.
Para resumir: depois de mais de duas horas eu tinha virado uma criatura arrasada, com a pressão arterial certamente lá nas alturas, chorando como criança pequena, com a manhã perdida e cheia de prezuísos materiais devido às coisas que não fizera. Não houvera o que demovesse aqueles pobres coitados dos atendentes do seu medo do desemprego, e mesmo a moça encarregada de serviço não se atrevia a me dar o telefone do técnico. Vejam só o medo que o Monstro chamado Capitalismo põe até nos seus representantes um pouquinho mais bem remunerados - se for bonzinho, se fizer uma gentilezinha, ruazinha pra você, que não sabe cumprir nossas ordens!
Enfim, um técnico ligou para mim, da minha cidade, acho até que de perto de casa. Pegou-me chorando, pura angústia, a manhã perdida. Eram quase 11 e meia da manhã. Ele foi gentil, marcou agenda, deu telefone, deu tudo. Só naquele momento soubera das minhas necessidades. Nem era técnico da GVT - pertencia a uma empresa terceirizada, outro tipo de vítima do Grande Monstro chamado Capitalismo, que faz um montão de gente trabalhar por uma ninharia e não os esfola para aproveitar o seu último alento porque mais cedo ou mais tarde eles morrerão de inanição mesmo, quando já não tiverem mais forças para serem consumidores.
Bem nessa hora um outro técnico bateu-me à porta e resolveu meu problema. Já estava a resolvê-lo quando seu patrão, o que eu falara um instante antes, ligou-lhe para lhe contar do meu caso. O meu estresse estava tão grande que eu chorava como criança de jardim-de-infância.
- Tu não sabias que eu tinha que sair antes do meio dia?
- Não, não sabia.
- Poderias ter vindo talvez às duas, talvez às três da tarde, e não ter ninguém em casa!
- É, poderia.
- E então teu relatório diria que não puderas atender porque a casa estava fechada, e amanhã eu teria que começar tudo de novo.
- É , sim, senhora.
Pedi-lhe desculpas pelo meu choro, do qual ele não tinha culpa, expliquei-lhe da minha manhã perdida, da falta de humanidade como o 0800 da GVT tratava seus clientes. Ele era um bom rapaz, não disse nada, mas vi que entendia.
Aquele pessoal que atende lá no 0800 também é um pessoal bom, e não sei como consegue suportar pessoas estressadas como eu estava hoje, com certeza todos os dias, senão a todas as horas. Imagino como anda a sua saúde, o seu nível de estresse, as dores no estômago, os eminentes depressões a lhe espionar pelos cantos, e sempre amedrontados pelo Capital, sempre com medo do lugar na multidão dos excluídos, sempre a dizer somente as frases que lhe são permitidas, apavorados de medo de fazerem uma gentileza, de darem uma mão para alguém. É a sobrevivência deles que está em jogo. É justo isto? É assim que se tratam seres humanos, empregados ou clientes?
Agora são cinco horas da tarde, e ainda estou cheia de mágoa e de vontade de chorar, decerto com a pressão arterial ainda alterada. Dei de cara, hoje, com o novo deus chamado 0800 - hoje foi o da GVT, mas amanhã pode ser outro. Penso que a maioria das pessoas já teve, algum dia, de telefonar, e depois fazer genuflexões para este novo deus que se apossou do mundo Capitalista onde vivemos.
Você acha justo tal desgaste físico e emocional (fora os prejuízos financeiros ) que ele causa? Até quando vamos suportar os novos deuses?
Blumenau, 26 de agosto de 2005.
Sobre o Autor
Urda Alice Klueger: Escritora catarinense de Blumenau, onde vive e trabalha. Publicou inúmeros livros, entre eles "Entre condores e lhamas" e "Crônicas de Natal"http://geocities.yahoo.com.br/prosapoesiaecia/urdaautores.htm
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