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Um Malogro chamado Realidade

por Chico Lopes *
publicado em 29/08/2005.

Um livro interessante, que é um dos meus companheiros de cabeceira há décadas, é “A orgia perpétua – Flaubert e Madame Bovary”, de Mario Vargas Llosa.

Aviso: a edição, da Francisco Alves, é de 1979, e hoje em dia creio que só possa ser encontrada em raras estantes particulares ou em sebos. Dica para algum editor de sensibilidade reeditar, porque o interesse é permanente.

Quem gosta de literatura e gosta de saber quais livros alguns escritores de fama elegem como predileções, revelando os motivos destas em tintas confessionais, encontrará quase um modelo desse gênero no livro de Llosa sobre o romance também paradigmático da que se convencionou chamar “escola realista”.

Llosa começa dizendo que, numa certa época, residindo em Paris, ao sofrer a tentação do suicídio, se purgava lendo o trecho de “Madame Bovary” em que a heroína, já sem outra saída diante do fracasso de seu casamento e de seus amores extraconjugais, endividada sem possibilidade de pagar, toma arsênico. A descrição dessa cena é um dos primores cruéis da arte realista de Flaubert. Ninguém que a tenha lido se esquece do “gosto de tinta” que secava a garganta da infeliz. Temos que acompanhar sua longa agonia, as atrocidades que seu organismo padece, como se o mundo medíocre que a cerca a punisse dessa maneira por ter ousado sonhar. Os sonhos de grandeza romântica de Ema Bovary, sua luta obstinada contra um casamento que seria satisfatório só para uma mulher desprovida de toda imaginação, acabam ali, naqueles estertores pavorosos, e sentimos o peso de uma injustiça ilimitada contra aquela carne. Mas é um dos prodígios da arte de Flaubert: ele queria nos fazer odiar a estupidez pequeno-burguesa com violência, e precisava de um mártir para isso.

Cumplicidade com Llosa

Confesso que Llosa não é dos meus escritores favoritos, e a ironia é que esse livro sobre Flaubert é dele o que mais gosto, porque “Madame Bovary” sim, é um dos cinco livros que acho fundamentais na minha vida, que relerei sempre.

É impressionante como os clássicos reabrem em nós esconsos emocionais nos quais nos refugiamos sempre. É como se, relendo-os, tendo já vivido por procuração aquelas intensidades dramáticas de vidas fictícias, tivéssemos, de algum modo, criado latências semelhantes, pequenas entidades psíquicas de certa autonomia que disputam com nossas partes mais conhecidas e racionais um lugar na nossa personalidade total.

Com o passar do tempo, o apego a certos livros é quase uma declaração de misantropia: eles são mais interessantes que as pessoas reais que nos cercam. Num livro muito relido, reencontro criaturas que são para mim mais reais e interessantes que as pessoas que conheço ou que posso encontrar, digamos, numa festa ou numa reunião social. Iluminam minha vida, fazendo-a mais ampla, mais geral – num certo gesto ou numa fala empolada, é possível reconhecer o farmacêutico Homais, noutro, o médico de província, esse pobre diabo Bovary, com quem Ema se casou, e no sujeito arrumadinho, correto e insípido, que quer “subir na vida”, o apagado Leon.

Quanto a Flaubert, tenho-o em alta conta por pregar, acima de tudo, a integridade da arte contra ideologias políticas e outras tantas bobagens mundanas e exteriores que só fazem mal ao verdadeiro escritor.

Pai de todo o realismo que hoje conhecemos já em formas diluídas, mas não esgotadas, Flaubert nos disse o que mais nenhum escritor digno deste nome esqueceu: que o autor está na obra, inevitavelmente, pouco importando onde e como – mulher, homem, hipopótamo ou borboleta –, visto que tudo que importa é o estilo, a criação, a vida que o texto ganha com o talento e a imaginação empenhados na tarefa de captar e transfigurar.

Disse uma frase célebre: “Os bons sentimentos não dão boa literatura”. Ambígua, a frase é menos compreendida. Sua validez se ergue quando vemos, sucessivamente – e hoje em dia, na enxurrada de mediocridade que se publica – a quantidade de livros ruins escritos com “coração” e “boas intenções”. E disse: “Todos os assuntos são indiferentemente bons ou maus, conforme a maneira com que são tratados, e os que parecem mais vulgares podem tornar-se os melhores”.

Llosa se rende à personagem Ema, como todos já nos rendemos alguma vez. Tem por ela uma paixão que se revela na maneira como vai citando o Flaubert fetichista de sapatos femininos e outros pormenores. Mostra como, precursora involuntária do feminismo, Ema comanda o tímido escriturário Leon nas ações eróticas, destemida e sem moralismos. Quando fala da cena da carruagem, em que na pena discreta e insinuante de Flaubert, se consuma obliquamente uma relação sexual, abre-nos os olhos para a verdade de que o melhor sexo em livros é aquele em que a sugestão e a insinuação prevalecem.

Ema não é feliz com seus amantes. De Rodolfo Boulanger, fazendeiro rico e afetado, passa para o escriturário Leon. Os dois são tão medíocres quanto seu pobre marido, cada um a seu modo, e só lhe são superiores, a seu ver, porque, afinal de contas, não são ele. Llosa observa que, na tentativa de ser livre, ela se masculiniza, e tinha que se masculinizar para poder fazer de Leon um amante à sua altura, já que ele era quase “feminino”, de tão fraco.

Conheceremos quem é Boulanger, o fazendeiro sedutor, no ato da elaboração daquelas cartas alambicadas, que destina a todas as incautas que conquista e das quais, mais tarde, enfastiado, precisará se livrar. A cena em que se revela completamente a sua fraqueza de caráter é aquela em que Ema lhe aparece em casa, desesperada, para rogar que a ajude a pagar suas dívidas estranguladoras com roupas e outros luxos. Ele se revela, afinal, apenas um cafajeste que conquista mulheres e as contabiliza para a sua vaidade e, que na hora das dificuldades, não passa daquilo que é: um proprietário de terras sovina e bem “realista” na questão de preservar o bolso. O que ele faz é, literalmente, abrir a porta do suicídio para a sua ex-amante.

Traidora ou traída?

Não sabemos se essa mulher, que traiu seu marido e traía o papel tradicional de esposa e mãe (quando a filha lhe nasce, acha-a feia, despreza-a; maternidade não é seu forte), foi uma traidora ou foi a grande traída. Sua grandeza, como observa Llosa, está no fato de ser uma perdedora por antecipação – o que ela quer, a sociedade que a cerca jamais poderá lhe dar, mas ela é maior, mais generosa, mais livre que suas circunstâncias, e terá que pagar caro por isso. Ema, que Llosa compara ao Quixote de Cervantes, acreditou demais nos romances piegas que lia e decidiu que a realidade tinha que se submeter a eles, assim como o Cavaleiro da Triste Figura quis fazer com seus romances de cavalaria. Querer que a quimera seja maior que a vida todos sabemos no que dá.

O eco de “Madame Bovary” na contemporaneidade não pode ser subestimado: quem é não perdeu seu romantismo em contato com os malogros da realidade? O romance é eterno um tanto devido a isso: revela que não há saída para sonhadores, se estes sonhadores persistem em tornar reais seus sonhos mais generosos, mais livres, se não são cínicos, não se acomodam ou não sabem como negociar com os limites da realidade. O malogro os espera em cada curva, e o malogro final pode ser devastador.

Pai do realismo, Flaubert vinha na verdade do romantismo literário, e, para reforçar o quanto dele havia em Ema Bovary, confessou: “Crêem que eu seja apaixonado pelo real, enquanto o detesto: pois que por ódio do realismo é que empreendi esse romance...”

É uma confissão crucial: o artista verdadeiro é um inimigo completo do “realismo” vulgar, qual seja – de uma vida pequeno-burguesa, limitadora, na qual, por covardia, se racionaliza a mesquinhez e se ataca a grandeza dos “românticos” que dela fogem, tachando-os como “sem juízo”. O que nos pede a “vida real”, ou essa criação ideológica tão típica de gente sensata, comedida, adaptada às circunstâncias? Que renunciemos à desmesura, ao sonho, à aventura. Flaubert era artista, acima de tudo: sabia que, esmerando-se em produzir um livro quase maníaco na sua profusão de detalhes realistas, produzia era um protesto contra um mundo detestável, raso, mesquinho, e queria fazê-lo com um máximo de eficiência. Tomado por um realismo passional, queria era, através da apreensão precisa do mundo, perpetrar uma denúncia de sua irremediável pequenez. Ele conseguiu: odiamos todos esses arautos da vida pequena, sensata, provinciana (médicos ineficientes e esforçados, farmacêuticos pedantes e cheios de preconceitos, sedutores vagabundos com suas pieguices calculadas) com acentuado vigor ao relermos seu livro fabuloso: todos os artifícios com os quais as vidas limitadas se disfarçam diante de nós caem por terra ao lembrarmos da lucidez com o que o escritor os desmistificou.

Sabemos, pelas informações que Llosa vai pinçar em sua vida pessoal, sua correspondência, o quanto ele odiou as limitações vulgares de seu mundo, quanto fugiu dele, com auxílio do dinheiro da mãe. Foi um burguês também, mas contrito, desesperado, porque tinha que conviver com algo que em si era maior que qualquer burguesia: o apetite pela arte.

Para combater o tédio e a mediocridade de um mundo utilitário e sem um pingo de grandeza e aventura, tinha só uma solução: “O único meio de suportar a existência é despojar-se na literatura como numa orgia perpétua” .

Creio que, até hoje, não existe outra para nós.

Sobre o Autor

Chico Lopes: Chico Lopes é autor de dois livros de contos, "Nó de sombras" (2000) e "Dobras da noite" (2004) publicados pelo IMS/SP. Participou de antologias como "Cenas da favela" (Geração Editorial/Ediouro, 2007) e teve contos publicados em revistas como a "Cult" e "Pesquisa". Também é tradutor de sucessos como "Maligna" (Gregory Maguire) e "Morto até o anoitecer" (Charlaine Harris) e possui vários livros inéditos de contos, novelas, poesia e ensaios.

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Francisco Carlos Lopes
Rua Guido Borim Filho, 450
CEP 37706 062 - Poços de Caldas - MG

Email: franlopes54@terra.com.br

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