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Trecho do livro "Um Amor Anarquista"
por Miguel Sanches Neto
*
publicado em 21/08/2005.
"Somos sempre modificados
pelo que amamos."
Joseph Brodsky, in Menos que um
Sobre uma banqueta de madeira, deixada ao lado de minha cama, estreita igual à dos demais solteiros, coloquei uma lata com flores silvestres, para que Jean Gelèac encontrasse ambiente agradável. Ele está com o grupo desde meados de 1891 e nunca teve mulheres, recusara o amor fácil de Narcisa, que mais espalhou a discórdia entre casados e solteiros do que amenizou a falta de fêmea. Tímido e jovem, um tanto romântico como sempre somos aos vinte anos, Gelèac tem se dedicado ao vício da virtude, resolvendo-se sozinho. Seu rosto está coberto de espinhas e, ao contrário dos homens casados, ou dos mais maduros, acostumados à solidão destas matas, ele tem a pele cor de papel e os olhos fundos, revelando ânsia de amor.
Falei seriamente com ele, estava precisando de mulher, e ele me disse que não, agüentava bem a vida na Colônia, mas bastava ver aquele rosto para perceber o quanto sofria. As mulheres casadas, mesmo se quisessem, e desgraçadamente elas não querem, não poderiam dar-lhe o carinho que merece. Decidi então compartilhar minha cama com ele.
Troquei também os lençóis — seria a primeira vez com uma mulher de verdade, e ele merecia algo bonito pelo que fizera à Colônia, por sua coragem e abnegação. Eu estava excitado por poder proporcionar aquele momento de amor.
Adele chegou quando a cama estava arrumada. Vinha com um de seus vestidos velhos, remendado na altura da barriga e ao lado da cintura, fino de tanto ser lavado, revelando o corpo miúdo, mas bem-feito, de mulher madura e saudável — esta saúde seria o remédio de Gelèac. Ela não estava nem expansiva nem acanhada, aproximou-se e me beijou na boca, numa entrega pacífica e silenciosa — senti sua pele fresca e os cabelos ainda úmidos do banho vespertino. Por um momento, tive vontade de ficar com ela no quarto, de trancar a porta de nossa casinha e convidá-la para se deitar; eu também me encontrava órfão de amor. Poderia ficar com ela até o amanhecer, não deixando ninguém tocar naquele corpo, mas este pensamento se desfez logo. Fui à janela e a fechei para que não entrassem pernilongos. Ela acendeu a lamparina pendurada na parede.
Para não pensar como um burguês, eu tinha que continuar preparando o quarto. Passei a vassoura nas tábuas do chão, fazendo um barulho áspero, enquanto Adele ajeitou-se na cama, olhando a chama da lamparina, que jogava luzes estranhas em seus olhos.
— Você acha que Gelèac vem? — ela quis saber.
— Garantiu que sim. E Aníbal? Falou com ele?
— Eu disse que viria à sua casa, ele já estava um pouco— bêbado e mandou que eu te beijasse muito, você merecia
— Falou de Gelèac?
— Ainda não. Talvez ele nem apareça, para que fazer Aníbal sofrer antes da hora?
— Ele vai aceitar quando outras mulheres seguirem o exemplo
— Aceitar ele já aceita, não consegue é deixar de sofrer.
— É um bom socialista, acabará encontrando força.
Adele não prestava atenção em meus movimentos, imóvel, esperava a hora em que atuaria no teatro. Era assim que eu via aquele encontro, uma peça de teatro em que eu era o autor do texto, definindo o que cada um dos personagens deveria fazer ou falar, e esta autoria me livrava da tristeza que os olhos de Adele destilavam em contato com a claridade da lamparina.
A luz a deixava bonita. Eu não identifiquei esta beleza quando, em meu retorno à Itália, nos encontramos. Aqui na Colônia, talvez pela luminosidade tropical ou pelo verde das matas ou mesmo pelo silêncio, ela ganhou uma formosura que cresce a cada dia. Só ela não percebe, pois nem espelho tem. E isso é bom. Sua formosura pertence a todos os homens livres que a desejam não como Adele, companheira de Aníbal, e sim como mulher.
Percebi que havia mais alguém em casa, mas não ouvi som algum. Fui à cozinha e encontrei Gelèac encostado na parede. Pedi que me acompanhasse, e ele, acanhado, mãos nos bolsos, perto do sexo, lugar que seus dedos conheciam tão bem, me seguiu e eu disse para que se acomodasse na cama, ao lado de Adele. Ele hesitou um pouco, mas ela, com cuidado, tomou suas mãos e foi puxando o jovem. E aquele corpo forte se deixou levar pelos braços finos da mulher, arcando ao ponto de ou se sentar na cama ou se ajoelhar. Sentou-se e recebeu um beijo, eu sabia que dali em diante eles não precisavam mais de mim, abaixei-me, beijei a testa dos dois e saí, fechando a porta da casinha — o coração acelerado, como se fosse minha primeira vez com uma mulher.
Caminhei pelo campo, evitando o refeitório, Aníbal poderia me ver e perguntaria pela companheira. Não era hora de falar que nosso casamento anarquista tinha mais um sócio, um rapaz cheio de vida e de ideais, um dos nossos, defensor da vida comunitária, que merecia Adele talvez mais do que nós dois, pois era jovem e trocara sua juventude por esta vida.
Uma parte de mim, no entanto, sentia falta da mulher, era minha raiz egoísta, contra a qual eu lutava todos os dias, lembrando que os interesses da Colônia tinham mais importância e minhas dores não passavam de sentimentos individuais e suportáveis. Caminhava pela estrada, vendo a lua se levantar no horizonte, uma lua cheia, luminosa, pulsando de forma tão intensa que cheguei a sentir vontade de voltar para minha casa, para minha cama, para minha mulher. E de repente eu queria que as coisas fossem minhas. Isso era triste, mais triste do que a solidão.
Eu havia conhecido Adele em novembro de 1891, na Itália, quando falava do amor livre, da necessidade de mudança nos relacionamentos, só quando a mulher não pertencesse a ninguém e os filhos fossem não de um pai, mas da comunidade, a noção de família estaria banida. Falava entusiasmado, idealizava bastante, e no final, quando conversava com algumas pessoas, contando as novidades da Colônia, ia muito bem mas ainda faltavam mulheres, que se aventuram menos do que os homens, ela se aproximou e, levando-me a um canto do salão, disse que concordava comigo, a mulher não podia se prender a nenhum homem, devia querer bem a todos; ao querer bem a uma pessoa, o sexo com ela é mais legítimo do que com o cônjuge; no casamento, o sentido de obrigação anula o desejo. Ela falava olhando para mim, e logo eu quis saber um pouco dela, então me contou que era viúva de um dos companheiros, estava pensando em partir para o Brasil, por isso tinha vindo à minha palestra.
Como é meu costume, perguntei-lhe diretamente, sem nenhuma lascívia no tom da voz, se o companheiro tinha sido o único homem na sua vida.
— Tive outros — e depois de um breve silêncio. — Amei o marido de minha irmã.
— E ela sabia de vocês dois? — Não era um homem que estava fazendo estas perguntas, mas um profissional. Ela compreendeu isso e respondeu como o paciente a seu médico.
— Não sabia. — De novo o silêncio. — Ou pelo menos não sabia oficialmente. Talvez desconfiasse, principalmente depois que ficou doente, sem poder receber o marido, que passava as noites com ela e o resto do tempo comigo.
— Você sente remorso?
— Por ter amado meu cunhado?
— Por não ter contado.
— Não sei se é remorso, acho que teria sido mais fácil para todos, mas com ela doente não tive coragem de dizer nada. Ela logo morreria.
— E morreu?
— Segurando minha mão. Tive dó, mas senti alívio.
— Você ficou com o marido dela?
— Apenas uns meses, então ele adoeceu, tu-berculose como minha irmã, e tudo foi ainda mais rápido.
— O amor para você foi também alegria?
— Até agora tem sido dedicação.
— Amou mais alguém?
— Um anarquista que me mostrou o que é a solida-riedade, fomos perseguidos, passamos fome, mas com ele o amor era algo mais forte.
— E ele te abandonou?
— Da maneira mais dolorosa, a única que não fere o orgulho de uma mulher, embora a deixe ainda mais des-protegida... Ele morreu.
— De quê?
— Acho que foi a vida difícil que levávamos, quase sem comida, dormindo mal, mudando de cidade a toda hora, sempre expulsos pelos patrões.
— E agora você está com alguém?
— Vivo há pouco tempo com um anarquista. Gosto dele tanto quanto dos outros. Como disse, o amor para mim tem sido mais companheirismo.
— O amor justo sempre é companheirismo.
Nós nos despedimos e não pensei mais em Adele, em seus olhinhos pequenos, sempre brilhantes, apesar da fisionomia de mulher sofrida.
Quando, em novembro de 1892, ela chegou com o ma-rido, fui frio. Eles tinham parado vários dias em Cu-ri-tiba, sem se decidir se viriam ou não para a Colônia por causa da propaganda negativa feita pelos dissidentes. Para estes, não somos uma colônia anárquica, e sim um bando de preguiçosos e idealistas.
Na companhia de uns profissionais, o casal chegou desanimado, temendo o que iria encontrar aqui, e o que encontrou foi nossa pobreza, estas tantas casas de ma-deira— e a pouca comida. As mulheres casadas não gostam quando— aparece mais gente, pensam que quem trabalhou foram— elas e seus maridos. Adele e Aníbal não traziam muito dinheiro, apenas setecentos réis, que eles colocaram na caixa coletiva, mas nem isso melhorou o ânimo das pessoas. Eu tinha ficado com raiva daquela hesitação inicial, eles não deviam ter acreditado nas mentiras dos antigos moradores da Colônia, que passaram por aqui mais para atrapalhar do que para ajudar a construir nossa família anárquica, e agora queriam dissuadir os novos companheiros.
Só depois de uns dias, quando eles já estavam trabalhando — Aníbal nas estradas, Adele no refeitório comunitário e na horta — , pude conhecer melhor aquela mulher. Em um fim de tarde, depois de uma minestra aguada, ela me mostrou a carta que Giannotta, amiga em comum, escrevera. Era mais um bilhete recomendando que me procurasse e se tornasse minha amiga. No final, pedia para Adele me dar um beijo e um abraço.
— Você ainda não fez isso — falei, com um tom levemente malicioso.
— Quem sabe um dia... — ela me disse, deixando-me sozinho na mesa e indo para perto de Aníbal, que conversava com um grupo de colonos.
Muitos dias se passariam antes de Adele cumprir sua promessa. Nós sempre conversávamos e eu perguntava se ela ainda admitia o amor livre, pois alguém devia dar o exemplo, e eu estava tão desgraçadamente só que para mim seria mais do que um experimento socialista, seria a própria alegria naquele estado de privação. Eu tinha trocado a segurança de uma família pela amizade dos companheiros, mas me faltava afeto erótico.
— Poderíamos testar o amor livre, esta é uma Colônia experimental, voltada para a liberdade feminina.
Adele concordava com tudo, sem se decidir.
— Tem medo do que vão falar de você? — perguntei.
— Você já me conhece o suficiente para saber que não me importo com a opinião dos outros.
— Teme pela dor de Aníbal?
— É o mínimo que se pode esperar de uma mulher honesta, não é?
— Então vamos contar tudo a ele.
Minha determinação moveu Adele, que falou com ele no mesmo dia. Aníbal já desconfiava de nossos encontros— , ainda inocentes. Encheu os olhos de lágri-mas, mas não chorou nem protestou. Adele per-guntou-lhe se a considerava mulher livre ou serva de seu marido. Livre, ele disse. Ela continuou explicando. Uma mulher livre não só podia como devia ser dona de seu corpo e de seus carinhos. Ele teve que concordar, segurando sua mão na tenta-tiva de prendê-la. Seremos exemplo para essas cam-ponesas que hoje não têm patrão mas continuam obedecendo aos maridos, ela disse. Aníbal não falava nada, olhando a mulher que queria o direito de conhecer outros corpos.
— Já aconteceu algo entre vocês?
— Não faríamos nada sem sua aprovação. Você não é um burguês odioso.
— Também não sou seu dono; se você acha que é assim que as coisas devem ser, concordo.
— Mas concorda com raiva?
— Concordo sofrendo.
— O que você teme?
— Que você fique apenas com ele.
— Ficarei sempre com os dois.
Naquela mesma noite, depois desta conversa, e depois de terem se amado, um amor doído, Adele deixou sua casa, com o consentimento de Aníbal, e veio para minha cama. Entrou triste, mas a tristeza não a impediria de fazer o que ambos desejávamos. Sua atitude era a da freira atendendo ao chamado de um moribundo no meio da noite, pura resignação, nosso encontro levava outra pessoa a sofrer e, por isso, também nos fazia sofrer.
— Vim cumprir aquilo de que me incumbiu Giannotta — ela disse, séria.
Então me entregou seus lábios sem nenhum gesto caloroso. Eu abracei seu corpo miúdo, era uma mulherzinha que talvez em outras circunstâncias não me encantasse, e senti um arrepio. Apesar de seu corpo frágil, havia tanta força em sua decisão! Ela deixava para trás o desejo de ser respeitada por sua conduta, abandonava, além de nossa triste pátria, o passado inteiro daquela Itália católica, tudo para experimentar comigo uma nova forma de amor. Adele crescia em meus braços e logo estávamos nos beijando com desespero juvenil. Quando nos vimos nus, era como se durante séculos nossos corpos já se conhecessem.
Sobre o Autor
Miguel Sanches Neto: Escritor paranaense e crítico literário, assinando coluna semanal no maior diário do Paraná, a Gazeta Povo (Curitiba), tendo publicado só neste jornal mais de 350 artigos sobre literatura, fora as contribuições para outros veículos, como República e Bravo!, O Estado de São Paulo, Jornal da Tarde (São Paulo) e Poesia Sempre e Jornal do Brasil (Rio de Janeiro).< ÚLTIMA PUBLICAÇÃO | TODAS | PRÓXIMA>
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