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P A L A V R A S

por Paulo da Mata-Machado Júnior *
publicado em 17/08/2005.

Eça de Queiroz descreve em uma passagem do seu mais ambicioso romance, "Os Maias", cena inesquecível a respeito dos limites da sordidez humana. Em determinado momento o crápula chamado Dâmaso Salcede, responsável por difamar o herói da história, Carlos da Maia, é obrigado por amigos deste último a escrever uma carta declarando que as injúrias que mandara publicar eram fruto de "bebedeira incorrigível e palreira" e ao "hábito de intemperança hereditária".

Tudo vai indo muito bem, o biltre copiando com sua "bela letra" as terríveis palavras acusatórias contra si próprio, quando de repente pára, "com a pena indecisa". Aos amigos de Carlos parece que finalmente alguma coisa de humanamente digno sairia daquela "gordura balofa, um resto escondido de dignidade, de revolta"; mas logo se desiludem ao escutar a dúvida do inacreditável Dâmaso: "Embriaguez é com n ou com m?"

Nesses últimos dias eu me lembrei do pilantra do Dâmaso, pois também estava com dúvidas a respeito de certas palavras da nossa amável língua pátria: Não que eu vá escrever bilhetinhos anônimos difamando ou caluniando alguém, longe disso; mas comecei a me dar conta do tempo decorrido desde que pela primeira vez ouvi certos vocábulos e como, ao que tudo indica, eles vieram mudando de significado nesses anos todos.

Não. Não é bem "mudar o significado": antes uma sutil e continuada alteração, quase imperceptível, no uso das palavras. De tal forma que o sentido foi-se transformando pouco a pouco, foi sendo retorcido, alterado, a ponto de virar quase um antônimo do que queria dizer nos recuados tempos da minha infância.

Esse fenômeno trouxe como conseqüência o fato de cada vez entender menos essa língua com a qual nasci. Usar, uso até hoje, mesmo porque só sei essa. Mas que fica cada vez mais esquisita, ah, isso fica… O ritmo com o qual as palavras vão mudando, cada vez mais, cada vez mais rápido está fazendo com que elas fiquem incompreensíveis.

Um exemplo: quando ainda pequeno, ouvi pela primeira vez "ética". Aí alguém me explicou: "vergonha na cara". Ficou. Hoje, ouço dizerem que não é bem isso, que é preciso "relativizar" o termo de acordo com as circunstâncias e eu perco o fio, fico perdido: tornar relativo o quê? A vergonha? A cara?

Parece que outro vocábulo igualmente modernizado é "canalha": lembro-me que era uma palavra tão forte, tão definitiva, que havia até mesmo um personagem a ela incorporado, que a descrevia: Era o "Palhares" do Nélson Rodrigues, sujeito capaz de passar uma cantada na própria cunhada, no velório do marido desta.

Pois bem: ao que tudo indica, "canalha" deixou primeiramente de ser usada como adjetivo para somente ser um substantivo, dos mais comuns, acatado, aceito e usado pela sociedade conformada com os costumes modernos: anda substituindo (sem maiores traumas, segundo me informaram) usual e freqüentemente os termos "Senador" "Deputado", "Governador" e até mesmo "Presidente". Acho que a antiga forma "político" tornou-se por algum motivo desusada, fora de moda, obsoleta e ninguém me avisou.

Mas recordo-me ainda outra vez do Dâmaso: há tanto tempo, há tanto tempo mesmo que não ouço mais "hombridade" que precisei olhar no dicionário se é com ou sem o h inicial... O significado, então, esse ao que parece ficou por aí, esquecido e empoeirado em algum desvão do destino: "nobreza de caráter, dignidade"...

E mais e mais palavras foram me ocorrendo, palavras que hoje são motivo de confusão e embaraços, uma vez que representam apenas traços de memórias quase apagadas: "honestidade", "arrependimento", "sinceridade", "verdade". Convivem com outras igualmente submetidas a uma espécie de limbo, de onde são resgatadas misteriosamente por seres indefinidos, escusos (acho que chamados "marqueteiros"), repaginadas e colocadas novamente em uso, porém como já disse com o significado invertido: "Arrogância" "desculpas" "obsceno", "cafetina", etc. etc...

Enquanto escrevia isso dando conta da minha perplexidade, fui podendo perceber que as palavras afinal de contas não só não têm a menor culpa, como não perderam o significado original da minha infância: elas são o que são, o que vieram se constituindo pelos séculos afora, pelo "engenho e arte" de tantos e tantos homens e mulheres que as amaram e delas fizeram uso, com carinho, enlevo e respeito.

Houve, sim uma mudança: mas essa ocorreu em nosso desgraçado país, uma diabólica e persistente alteração semântica, capaz de transformar "cloaca a céu aberto" em "país tropical e bonito por natureza". Mas para esse fenômeno não encontro palavras.

Sobre o Autor

Paulo da Mata-Machado Júnior: Sou mineiro do Rio de Janeiro, das vizinhanças da Praça da Bandeira, rua Mariz e Barros, ao lado do Instituto de Educação, cheio de meninas vestidas de azul e branco / trazendo um sorriso franco / no rostinho encantador: Hospital Gaffrée-Guinle, dezembro de 1942. Antes dos cinco anos virei ilhota, naquele paraíso tropical que era a Ilha do Governador dos anos quarenta: pescava, nadava, andava de bicicleta e nas horas vagas freqüentava com muita má vontade as aulas da escola 5-13 Rotary. E as matinês do Cine Miramar, religiosidade dominical.

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