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Terror e Piedade: A Carne Latejante de Ruth Rendell
por Chico Lopes
*
publicado em 06/07/2005.
O que se convencionou chamar de “livro policial” é, em geral, desdenhável, porque, produzido em ritmo industrial, não tem outra ambição além de ser entretenimento passageiro e competente. No Brasil, nos círculos de refinamento, mais ligados às universidades, esses produtos não são lá muito bem vistos, o que é curioso, pois na Inglaterra, terra natal de grandes escritores do gênero, nunca se achou que literatura policial fosse coisa inferior. Os ingleses dão a lição, com um refinamento de outra espécie – acham, sensatamente, que qualquer tipo de literatura é válido, desde que produza entretenimento civilizado. Deve ser esta a atitude mais sábia a tomar: não considerar que tudo que venha como produto abertamente comercial seja de uma vulgaridade total, nem supor que tudo que venha embalado com fita dourada e abençoado pela difícil complacência de críticos entojados seja o melhor do melhor.
Ruth Rendell é uma escritora inglesa com vários títulos publicados no Brasil. Consultando seu nome na Internet, vai-se descobrir que ela tem muitos livros publicados que nunca foram traduzidos no Brasil. Mas, dos que foram traduzidos, me lembro de três particularmente bons e reveladores, que li com um prazer parecido ao que me dão livros de escritores reconhecidamente de primeira: “Carne viva”, “Não fale com estranhos” e “Feitiço mortal”. Destes, o melhor é “Carne viva”.
PAVOR A TARTARUGAS
O personagem principal de “Carne viva” é um psicótico, Victor Jenner, que tem uma fobia rara: ele não pode ver tartarugas. Chama-se “quelonofobia”, a coisa, e nesse “Carne viva” foi que soube da existência dela. Mesmo não sentindo o pânico de Jenner, dá para entender o que o espanta: aquela cabecinha saindo daquele casco sugere de fato alguma coisa repulsiva, talvez meio obscena. Não importa. Importa o que vai pela cabeça atormentada de Jenner, e nisso Rendell se esmera, jogando-nos no interior do personagem e obrigando-nos a conviver com ele sem um julgamento moral rígido.
Nesse aspecto, na descrição objetiva de uma psicopatologia, dentro de um quadro narrativo bem organizado, puxando a empatia do leitor, Rendell se parece com outra grande autora de livros-policiais-que-policiais-não-são: Patricia Highsmith.
Victor Jenner, culpado de estupros (ele encontra alívio para seus tormentos violentando mulheres jovens), numa emboscada engendrada pela polícia, acaba atirando num policial, e o invalida. Vai para a cadeia, mas, sujeito bem-comportado (pode-se imaginar), ganha uma condicional, e se debate à procura do que fazer de sua vida destruída numa Londres contemporânea afetada pelo desemprego. Vaga entre personagens comuns que, se não são criminosos à maneira dele, com passagem pela cadeia, não deixam de ser desumanos, de uma desumanidade banal que por vezes assusta muito mais, já que essa desumanidade se mimetiza facilmente dentro dos chamados “padrões de normalidade”. Exemplo disso é a tia de quem ele tenta se aproximar, que vive sozinha, implacavelmente egoísta, sovina e cheia de manias. Outros personagens se parecem um pouco com algum vizinho que você suspeita seja meio monstruoso, mas que nunca irá para um hospício, pois não carrega os sinais de uma loucura que a sociedade considere realmente perigosa. Comparado a esses personagens, sofrendo com a tia odienta, Victor começa a despertar nossa piedade, mas é preciso sentir medo dele também, pelas razões que Rendell sutilmente vai tramando. O tiro com que invalidou o policial foi desferido porque este simplesmente o provocou, tentou diminuir sua masculinidade achando-o incapaz de atirar. O mais patético dessa história é a sua conseqüência: Victor procura o policial que vitimou e, encontrando-o, adota-o como uma espécie de pai, acabando por ir para a cama com a sua namorada, que, claro, não pode esperar do homem, inválido, satisfações mais que platônicas.
UM FILME ABAIXO DE RENDELL
Se essa história lhe fez lembrar vagamente alguma outra, algum filme, você está certo: ela foi ponto de partida para um filme famoso de Pedro Almodóvar, “Carne trêmula”, realizado em 1998. O filme foi muito apreciado pela crítica, mas, certamente quem o viu e gostou muito não tinha lido o livro que lhe deu origem. A história de Rendell foi consideravelmente mudada por Almodóvar em função das suas obsessões pessoais e, deslocada para Madri, não faz o mesmo sentido, pois o mundo de Rendell é visceralmente inglês, de uma desolação fria que não combina com o que conhecemos ou imaginamos da capital espanhola. Almodóvar tampouco respeitou o enredo, e, francamente, quem primeiro passou pelo livro de Rendell e depois viu o filme, ficará surpreso com a mediocridade deste.
O livro seria melhor adaptado por Hitchcock, se vivo fosse, ou algum diretor da linha de Hitchcock, talvez Claude Chabrol. Tem uma cara de argumento para filmes voltados para a psicopatologia, mas, trabalhada por diretores mais sutis e afinados com os temas do mundo do crime. Na verdade, inscreve-se na tradição dos livros que nascem com uma cara de facilmente adaptáveis para o cinema. Muita gente critica essa facilidade, achando-a mais uma armadilha do mundo comercial, e, realmente, há no mercado escritores que nem de longe podem ser considerados escritores – seriam antes produtores de textos provocativos que parecem sementes de algum filme comercial de maior ou menor sucesso. Não é o caso de Ruth Rendell, porém. Ela é prolífica, mas isso se deve ao fato de escrever num país onde a literatura é de fato uma coisa profissional; sua categoria é bem outra. Ser comercial não é, necessariamente, ser raso.
O triângulo formado por Victor, o policial inválido e sua namorada, é dos mais estranhos já engendrados pela literatura, e tem aquele tipo de estranheza que nos dá a certeza de estarmos bem perto da realidade. Trechos finais, quando o psicótico, ferido, e, sem saber, contaminado por tétano, procura carne de mulher num parque para estuprar e acalmar outra vez seu inextinguível tormento, parecem muito perto do mundo de Dostoievski, fazem pensar mesmo é em obras de arte literária superior. Só uma obra de arte nos deixa assim, com a impressão de que estivemos, no tempo em que mergulhamos nela, em contato com a realidade mais íntima e infernal de outro ser humano. O livro de Rendell deverá durar.
Sobre o Autor
Chico Lopes: Chico Lopes é autor de dois livros de contos, "Nó de sombras" (2000) e "Dobras da noite" (2004) publicados pelo IMS/SP. Participou de antologias como "Cenas da favela" (Geração Editorial/Ediouro, 2007) e teve contos publicados em revistas como a "Cult" e "Pesquisa". Também é tradutor de sucessos como "Maligna" (Gregory Maguire) e "Morto até o anoitecer" (Charlaine Harris) e possui vários livros inéditos de contos, novelas, poesia e ensaios.Mais Chico Lopes, clique aqui
Francisco Carlos Lopes
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