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Miguel Sanches Neto está morto
por Miguel Sanches Neto
*
publicado em 05/07/2005.
Sanches Neto: distância entre o menino que aparece em alguns poemas e o adulto que hoje escreve.
Venho de um País Obscuro retrata a infância como “ferida incicatrizável”
O maior elogio que alguém pode fazer ao novo livro de Miguel Sanches Neto, segundo ele mesmo, é lê-lo de uma sentada. Os poemas de Venho de um País Obscuro (Bertrand Brasil, 108 págs., R$ 21) pedem uma leitura urgente. Urgente como foi sua escrita. "Eu só escrevo poesia no mais completo estado de revolta contra o homem que sou, a sociedade em que vivo, a falência do corpo e a falta de afeto", diz o colunista da Gazeta do Povo, pontuando seu pensamento com um "etc." - sinal de que não são poucas as coisas que o revoltam.
Doutor em Letras, escritor, crítico literário e professor, Sanches Neto vem a Curitiba hoje para fazer o lançamento, às 19 horas, de seu livro de poesia na Saraiva do Shopping Crystal. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail de sua casa em Ponta Grossa (PR), ele fala de seu processo de criação, passa pela infância e escola para desembocar na morte de Miguel Sanches Neto.
Caderno G - Domingos Pellegrini diz que escrever, para ele, é algo natural, como comer e dormir. Como é o processo de criação para você?
Miguel Sanches Neto - Eu só escrevo poesia no mais completo estado de revolta contra o homem que sou, a sociedade em que vivo, a falência do corpo, a falta de afeto, etc. Por isso escrevo poucos poemas, em situações especiais, quando esta disposição de espírito encontra um canal de expressão pelas palavras em ordem poética. A poesia para mim é uma espécie de porta oculta, eu não sei onde ela está, mas de repente ela aparece nos lugares mais improváveis e eu entro por ela. Com a prosa, é diferente. Convivo por muito tempo com uma história - seja conto, crônica ou romance - e vou agregando episódios, palavras, falas, e fico esperando um sinal para começar a escrever. Eu só escrevo quando recebo este sinal, que não é místico ou qualquer coisa do gênero, apenas uma disposição física, um entusiasmo para a coisa. Mas poesia é antes revelação súbita de uma passagem, que também ficou madurando em mim, mas que surge momentaneamente. Neste sentido, a poesia é mais essencial do que a prosa, mais rara e mais arriscada. Há poetas que escrevem por fórmulas, é só vestir temas com a roupa do momento, mas isso não é poesia, apenas jogo de palavras.
- Você escreve poemas desde sempre e muito antes de se tornar romancista - seu livro de estréia foi de poesia, Inscrições a Giz (1989). Quais são as maiores diferenças entre produzir prosa e poesia?
- Há escritores que partem da prosa e outros que partem da poesia, podendo chegar ao outro extremo. Um João Cabral de Melo Neto, por exemplo, partiu dos meios da prosa (ensaística) para fazer poesia. Mas um Borges, um Machado de Assis, um Guimarães Rosa e um Dalton Trevisan partiram da poesia para fazer a grande prosa deles. Dalton Trevisan é um poeta do conto, tanto a sua linguagem quanto o seu processo criativo pertencem à poesia. Eu, modestamente, fiz o mesmo caminho, comecei como poeta e fui me dedicando à prosa, mas sem nunca perder o fascínio pelo poema. A poesia é uma espécie de motor oculto de tudo que escrevo.
- A dedicatória de Venho de um País Obscuro é para "Miguel Sanches Neto, in memorian". Quem é essa figura que está morta?
- As leituras mais rasas de meus livros insistem em dizer que sou um escritor autobiográfico. Que o que escrevo nada mais é do que confissão. Eu então resolvi matar o Miguel Sanches Neto para ver o que ia acontecer. Se eu está (sic) morto, acho que ficam inviabilizadas as leituras meramente autobiográficas. Há uma intenção marota nesta dedicatória, mas ela também mostra a distância entre o menino que aparece em alguns poemas - para mim, definitivamente morto - e o adulto que hoje escreve. Esta é a intenção mais séria da estranha dedicatória a mim mesmo.
- Você acredita que a infância - o país obscuro de onde todos vêm - é supervalorizada pelas pessoas?
- Cada um vê a infância de uma forma, a maioria como um período paradisíaco. A sensibilidade romântica domina nestas leituras do passado. Eu vejo a infância como ferida incicatrizável. E mais ainda, como outra temporalidade, que continua existindo num passado que nos chega como memória, mas que também tem autonomia. Eu acredito em alguns filósofos, segundos os quais todos os tempos existem concomitantemente. A minha infância está acontecendo em alguma dimensão. Para mim, ela está morta. Mas ela ainda está transcorrendo em certa dobra do tempo. Eu escrevi um poema sobre isso. É "Ligação". O adulto lembra-se do primeiro número de telefone de sua família e só por brincadeira liga. A voz que atende é a que ele tinha aos 12 anos. Ele entrou de forma errada no tempo. Descobriu uma das existências paralelas.
- Um dos poemas diz: "A escola nos mastigou a todos e depois nos cuspiu no esgoto". São palavras de um sobrevivente, não?
- São, sim. A escola é uma indústria de fazer bonecos em série. Ela é a assassina das vocações. A maioria das frustrações futuras vem do período escolar, pois a função do ensino é padronizar, definir o certo e o errado. Eu sobrevivi porque ignorei a escola - sempre fui um péssimo aluno - e me abandonei à leitura dos livros, sem obrigação nenhuma, aprendo apenas o que me servia e desprezando o resto.
- O lugar-comum diz que brasileiro lê pouco e lê ainda menos poesia. Você tem uma teoria para explicar esse desinteresse ou, quem sabe, a origem desse lugar-comum?
- Lemos poesia até demais. O brasileiro é um povo poético por excelência. Lemos a poesia na paisagem, nas letras das músicas, nos corpos amados, nos nossos sentimentos. O problema é que o brasileiro, povo extrovertido, de uma identidade externa, da rua (samba, carnaval, futebol, botequim), não se reconhece na poesia produzida segundo uma mentalidade fechada, que quer ser profunda e tudo que consegue é ser hermética ou sem sentido. O nosso verbo poético hoje é proibitivo para o público. É senha. Idioleto. Eu sempre quis fazer poesia aberta, comunicativa. Não gosto de posar de intelectual incompreendido.
- O fato de sua ficção mesclar ficção e experiência biográfica já causou algum inconveniente - como leitores que chegaram para conversar contigo como se o conhecessem profundamente?
- Não, nunca. O leitor está mais interessado em se reconhecer na literatura. Minha literatura fala de identidades de gente simples. Então, muitos me procuram para contar a própria história, dizer que se identificaram com tal ou tal passagem. Alguns autores não conseguem público porque querem ser lidos aristocraticamente. O leitor não quer nos ler, ele quer se ler. Aliás, só faz sentido ler se, como leitores, nos encontramos nas obras lidas.
- Pedido que vai, ao mesmo tempo, para o escritor e crítico literário: poderia citar três poetas brasileiros e três estrangeiros que considera inevitáveis?
- Para mim é difícil dar nota - apesar de, desgraçadamente, eu sobreviver como professor. No Brasil, gosto de tantos poetas que não vou me restringir a três: Cruz e Sousa, Alphonsus Guimaraens, Augusto dos Anjos, Manuel Bandeira, Carlos Drummond, Murilo Mendes, Mario Quintana, Cecília Meireles - só para ficar com os mortos. Entre os estrangeiros, fico com os mais próximos de nosso idioma - é impossível, mesmo para quem domina bem idiomas distantes, compreender plenamente (com o corpo) os grandes poetas. Assim, fico com Fernando Pessoa, Camões, Borges, Federico Garcia Lorca, Pablo Neruda, José Juan Tablada. A única grande língua estrangeira que podemos ler plenamente como brasileiros é o espanhol.
- Por que a poesia parece muito ligada à idéia de sofrimento?
- Porque o mundo atinge de forma mais agressiva o poeta, que é uma sensibilidade aguçada. O que para a maioria das pessoas é apenas um pôr-do-sol belíssimo, para o poeta é a personificação agressiva (de uma beleza cruel) da finitude. Tudo fere a pele fina do poeta, que é ainda um ser humano com um profundo sentimento de honra. Qualquer mínimo acontecimento coloca em xeque a sua humanidade, levando aos paroxismos da dor.
- Poderia adiantar algo sobre seu próximo trabalho?
- É um romance que se chama Um Amor Anarquista e que sai ainda este ano pela Record. O ambiente é o da Colônia Cecília. Eu tentei entender como uma comunidade de idealistas viveu em 1890 uma coisa tão ousada como o casamento em que a mulher devia ter mais de um parceiro, para assim destruir a família e os egoísmos.
Por Irinêo Netto. Curitiba: Gazeta do Povo, 04 de julho de 2005.
Sobre o Autor
Miguel Sanches Neto: Escritor paranaense e crítico literário, assinando coluna semanal no maior diário do Paraná, a Gazeta Povo (Curitiba), tendo publicado só neste jornal mais de 350 artigos sobre literatura, fora as contribuições para outros veículos, como República e Bravo!, O Estado de São Paulo, Jornal da Tarde (São Paulo) e Poesia Sempre e Jornal do Brasil (Rio de Janeiro).< ÚLTIMA PUBLICAÇÃO | TODAS | PRÓXIMA>
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