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Filigranas de Tocantins

por Rosângela Vieira Rocha *
publicado em 04/06/2005.

Há uns oito anos um amigo meu recebeu convite para trabalhar em Palmas, capital do Estado do Tocantins. Foi conhecê-la e voltou a Brasília desanimado, contando que a cidade era composta de poucas ruas, com poeira vermelha por todo lado e um clima quentíssimo. Durante anos guardei essa imagem, completamente equivocada, como pude comprovar terça-feira passada.

Recebida no aeroporto pela Professora Maria Alice Descardeci, do Curso de Comunicação da Universidade Federal do Tocantins, e pela aluna Lúcia Andréia, fui convidada para almoçar em um restaurante situado às margens do Rio Tocantins. Lá nos encontramos com o Professor Ricardo Descardeci, marido de Maria Alice, e nos deliciamos com um peixe de água doce, um dos melhores que já provei. Fiquei encantada com a beleza do rio, com o esplendor da serra e da vegetação verdíssima. Não vi poeira vermelha, vi apenas uma cidade planejada, que me lembrou Brasília, nos primeiros tempos. Palmas tem apenas dezesseis anos, uma adolescente ainda, lutando para desabrochar, em meio às crises próprias da idade. Pena que não pude pegar nenhuma das balsas para conhecer as ilhotas, pois precisava viajar mais de duzentos quilômetros, por terra, para chegar a Natividade, a cidade mais antiga do Estado, onde se realizava o Seminário de Comunicação, Cultura e Cidadania, para o qual fora convidada, como palestrante. Acompanhada por Lúcia Andréia, a viagem foi tranqüila, numa estrada muito boa, verdadeiro milagre no Brasil. À tardinha, chegamos a Natividade.

Fundada na terceira década do século XVII, com o fulgor do ouro, atualmente com dez mil habitantes, Natividade vive praticamente da pecuária e da exploração do calcário. O clima, conforme me explicou o Prefeito, Albany Nunes Cerqueira, é ideal para o gado mestiço, ainda pouco apurado, e a pastagem é natural. Vendida a preços baixos, pois não existem atravessadores, a carne é de excelente qualidade. Fiquei impressionada com o filé mignon, a sete reais o quilo, e com os churrasquinhos vendidos na rua, realmente saborosos, a um real. Tombada pelo Patrimônio Histórico, a cidade foi uma das 27 escolhidas para fazer parte do Programa Monumenta, do Ministério da Cultura, com financiamento do BID e apoio da UNESCO. O objetivo amplo é tornar o patrimônio sustentável, inserido na vida real das cidades, visando à conservação, ao lado da geração de receitas.
Natividade lembra um pouco a Cidade de Goiás. Diferentemente das cidades históricas mineiras, nas quais as casas são juntinhas, aqui há ruas afastadas umas das outras, para desespero dos participantes do Seminário, que, em sua maioria, ficaram acampados em barracas cedidas pelo Exército, no gramado do Colégio Agropecuário, e dependiam de condução, pois as atividades foram realizadas em locais diferentes.

A idéia de fazer um evento de tamanha envergadura em Natividade nasceu da imaginação e inteligência meio visionárias de Robério Marcelo Rodrigues Ribeiro, baiano de Jacobina, professor aposentado da Universidade Federal da Bahia, que, detestando a aposentadoria, fez novo concurso para a Federal do Tocantins. Conheci meu grande amigo há 27 anos, fomos colegas do Mestrado, na ECA/USP. Robério coordenou o evento, com a estreita colaboração da incansável economista Simone Camelo Araújo, gerente do Monumenta em Natividade. O terceiro grande colaborador foi o jornalista Rogério Silva, Supervisor de Telejornalismo da TV Anhanguera, afiliada local da Rede Globo. Mesmo ocupando cargo tão importante, Rogério é simpaticíssimo, sem nenhuma pose. Ficamos hospedados no mesmo hotel, ele e sua equipe, de plantão durante todo o evento. Esse fato garantiu a cobertura do Seminário, amplamente divulgado no noticiário local da Rede Globo. Só tive pena de não ter visto a minha entrevista, transmitida de manhã e na hora do almoço. Envolvida com as atividades, acabei perdendo os horários. Assisti aos noticiários nos outros dias. Uma reportagem, inclusive, me fez ficar roxa de inveja: um grupo de alunos visitou uma cascata lindíssima, em um recanto chamado Paraíso. Banharam-se, os danados, em meio a magníficas flores do cerrado. Para o local não existe estrada, e sim uma trilha feita pelos escravos. Mas é curta, chega-se lá com meia hora de caminhada.

A primeira palestra a que assisti (o evento começou no domingo e só cheguei na terça-feira) foi a da Professora Marlene Mogliari, da UFT, Campus de Araguaína. Falando sobre o tema de seu Doutorado, Línguas minoritárias, Comunicação e Expressão, brindou-nos com informações muito interessantes sobre os ucranianos que vivem no Sul, região onde nasceu. Embora estivesse contando com datashow e projetor de slides, só os conseguiu no final, o que não a impediu de dar o seu recado.

Na quarta-feira, fui conhecer a joalheria local, a única de que tenho notícia que só trabalha com filigrana, costume herdado dos portugueses, que, Deus sabe como, os nativitanos conseguiram preservar. Antes, preciso contar que sou aficionada pela joalheria. Em 1990, quando publiquei meu primeiro romance, “Véspera de lua”, pensei em sair do Serviço Público. Minha irmã Edna e eu queríamos ser joalheiras. Fizemos cursos de design de jóias e de joalheria em Belo Horizonte (ah, se soubéssemos da escola que existe em Natividade!) e de lapidação, em Brasília. Pasmem-se, mas na época cheguei a cortar e lapidar várias pedras, nos modelos básicos: talhe esmeralda, coração abrilhantado... Nosso projeto foi por terra, pois não conseguimos, na época, ter o capital necessário. Bem, entrei primeiro (e não consegui sair mais) na joalheria do Mestre Juvenal, uma pequena oficina onde se pode ver o pessoal trabalhar. Perguntei pelo Val, o proprietário, e soube que o Val a quem Robério encomenda jóias para a sua mãe (sim, Dona Porcina, 85 anos, é mesmo muito sortuda), é um dos funcionários e não se chama Val, mas ninguém desfez o engano e ficou por isso mesmo. Coisas de Natividade... Como dispõem de pouco capital de giro, quase não há jóias no mostruário. Mas, olhando as fotos dos cartazes pregados na parede, fui inundada por um enorme prazer estético: o trabalho é belíssimo, de uma delicadeza ímpar, pura ourivesaria portuguesa antiga. Há uma pulseira escrava, poderosíssima, toda em filigranas, de três aros interligados. Uma lenda na cidade diz que cada aro corresponde a um filho. Assim, as mães de sete filhos, por exemplo, devem usar sete aros... Sem filhos e com pouco dinheiro no bolso, saí de lá sem nenhum aro, é claro. Mas não é necessário que se compadeçam de mim: comprei um esplendoroso conjunto de colar (corrente filigranada com um pingente arredondado e trabalhado, com uma água-marinha no centro) e brincos iguais ao pingente. Ciente do magnífico trabalho local de ourivesaria, havia levado algumas gramas de ouro e pude negociar com Val, durante mais de duas horas, como manda a tradição mineira, para tristeza de minha acompanhante, Lúcia Andréia. Tive tanta sorte que o único conjunto pronto pareceu-me o mais lindo de todos. Se os cursos de joalheria e gemologia não me renderam nada, do ponto de vista prático, pelo menos fizeram com que tivesse “um olho muito bom para jóias”, como disse Robério, que imediatamente encomendou um conjunto igual para a sua afortunada mãe.

No dia seguinte, acompanhados pelo artista plástico Otávio Luiz, outro antigo e querido amigo, Coordenador do Centro de Cultura de Sergipe, visitamos a casa de Romana, mulher interessantíssima, que diz ter tido visões durante anos, e obedecendo a essas ordens, construiu, com as próprias mãos, uma soberba coleção de esculturas de pedra, cobrindo um terreno enorme. É muito difícil descrever esses trabalhos, que já foram mostrados no programa Fantástico. A generosidade de Romana, mostrando suas construções (símbolos de muitas culturas diferentes, aves romanas misturadas a motivos gregos, celtas e do candomblé, entre outros), seus mapas e cadernos, com desenhos fenomenais, impressiona. Não aceita pagamento, não faz comércio de sua fé, apenas sorri, dizendo, com a maior naturalidade do mundo, que o planeta Terra saiu do seu eixo no tempo da Arca de Noé, mas vai voltar, e que o Brasil será privilegiado com isso.

Por motivos diferentes, outra mulher muito conhecida em Natividade é Dona Naninha, que faz uns biscoitos (seriam sequilhos?) da família dos alfenins, cujo segredo aprendeu com a mãe. São feitos de polvilho, têm sabor de coco, mas também de outros ingredientes misteriosos. O acabamento é como a corola de uma tulipa, pura delicadeza. Não consegui trazer nenhum para casa, pois ela estava quase sem polvilho e todos os visitantes queriam encomendar os “amores-perfeitos”, como são chamados.

Gostei muito de conhecer o fotógrafo francês Alan Dhome, com seu Português perfeito, e as professoras do Campus de Araguaína, quase todas do Sul. Correndo o risco de me esquecer de algumas, aponto as historiadoras Ana Motter e Marizete e a professora de Literatura e Teatro, Eliane Testa. Outra presença fantástica foi a do Diretor do Colégio Agropecuário, Paulo Rogério, braço direito dos coordenadores. Foi importante conviver com as Marias, todas elas senhoras nativitanas, dos cursos Nominatas de Maria e de Oratórios, ministrados por Robério e Otávio. Embora não tenha podido ficar para o encerramento, no qual seriam expostos os oratórios, enriqueceu-me ter sido Maria das Graças, durante a oficina das Marias, na sacristia da linda igreja.

Outro momento memorável foi o da moqueca de frango com camarão e leite de coco, capitaneada por Robério e servida no Colégio Agropecuário. Além de ter ficado uma delícia (foram utilizados vinte frangos), tive o prazer de ouvir um dos elogios mais sinceros que já recebi: indo à cozinha procurar copos, deparei-me com uma das cozinheiras, que pondo a mão na cintura, disse: - "Benza, ó Deus, essa professora aí é toda bonitona, hein”? Achei o comentário muito engraçado.
Vestida de azul e devidamente “paramentada” com o colar e brincos em filigrana, fiz a minha palestra na noite de quarta-feira. O texto que havia elaborado era dirigido, especificamente, a alunos de Jornalismo. Qual não foi minha surpresa, contudo, quando percebi que havia poucos estudantes da área na platéia! (Creio que, como quinta-feira foi feriado, o Seminário acabou “dividido” em duas partes, ou em duas assistências, digamos: provavelmente por falta de condução, os alunos presentes nos primeiros dias retornaram a Palmas na quarta-feira e na quinta de manhã chegou novo grupo). Mas não me dei por achada e, após a leitura do texto, insisti para que os alunos de Natividade fizessem perguntas. Para mim, esse foi, realmente, o ponto alto do Seminário. Vários alunos de 7ª e 8ª séries, vencendo a timidez, pegaram o microfone e expuseram suas dúvidas. Falando sobre jornalismo e literatura, eu havia mencionado o livro “A sangue frio”, de Truman Capote. Contei resumidamente a história e um aluno quis saber a razão do assassinato da família do pastor norte-americano, pergunta que, curiosamente, nunca ouvi antes nas minhas disciplinas. Essa dúvida é justamente a chave da notoriedade daquele crime e da habilidade investigativa do autor, responsável pelo fato de o livro ter-se tornado um ícone do “novo jornalismo”. Comovente também foi quando uma jovem, acompanhada do pai, ambos de aparência modesta, perguntou-me, após a palestra, qual o primeiro passo para ser escritor, sonho que ela acalenta desde a infância. Meio perplexa, aconselhei-a a escrever um diário, o que sempre me pareceu prática salutar. O pai ficou muito satisfeito, e olhou-a de um jeito aprovador, tão doce que me deu vontade de chorar.

Mas o que mais me comoveu foi a pergunta de Maria Adélia de Araújo, ex-freira, a Maria de Lurdes, do curso Nominatas de Maria. Depois que falei sobre o jornalismo sensacionalista, ela perguntou-me “como é que se faz para adquirir senso crítico, a fim de assistir aos programas de televisão criticamente”? Lembrei-me, naquele momento, de um poema de Drummond, do livro “A poesia brasileira para a infância”, que meu pai encomendou do reembolso postal, e me deu de presente quando fiz oito anos:

Infância

Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.
Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia.
Eu sozinho menino entre mangueiras
Lia a história do Robinson Crusoé,
Comprida história que não acaba mais.

No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu
A ninar nos longes da senzala - e nunca se esqueceu -
Chamava para o café.
Café preto que nem a preta velha
Café gostoso
Café bom.

Minha mãe ficava sentada cosendo
Olhando para mim...

- Psiu... Não acorde o menino.
Pára o berço onde pousou um mosquito.
E dava um suspiro... que fundo!
Lá longe meu pai campeava
No mato sem fim da fazenda.

E eu não sabia que minha história
Era mais bonita que a do Robinson Crusoé.


O que Maria Adélia talvez não saiba é que já possui senso crítico, pois se preocupa com isso. E, como Drummond, posso afirmar que ela certamente não sabe que sua história é mais bonita que a de Robinson Crusoé.

Sobre o Autor

Rosângela Vieira Rocha: Mineira de Inhapim/MG, jornalista e mestre em Ciências da Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo; atualmente é professora da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília.

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