Crônicas,contos e outros textos

PÁGINA PRINCIPAL LISTA DE TEXTOS Ivo Korytowski


COMPARTILHAR FAVORITOS ver profile do autor fazer comentário Recomende para um amigo Assinar RSS salvar item em delicious relacionar no technorati participe de nossa comunidade no orkut galeria relacionar link VerdesTrigos no YouTube fazer uma busca no VerdesTrigos Imprimir

São Miguel das Missões Verdes Trigos em São Miguel das Missões/RS - Uma viagem cultural

VerdesTrigos está hospedado no Rede2

Leia mais

 




 

Link para VerdesTrigos

Se acha este sítio útil, linka-o no seu blog ou site.

Anuncie no VerdesTrigos

Anuncie seu livro, sua editora, sua arte ou seu blog no VerdesTrigos. Saiba como aqui

A CATÁSTROFE

por Ivo Korytowski *
publicado em 02/06/2005.

Ali haverá choro e ranger de dentes.
Mateus, 8


Imagine que você arrumou namorada nova e levou ela para conhecer sua casa, crente que ia abafar (com seus DVDs, seus CDs). O tiro saiu pela culatra, e ela saiu de lá reclamando de tudo: que o armário fedia a mofo, que os tapetes estavam empoeirados (ela é alérgica), que você tinha que mandar a faxineira embora e contratar outra.

É aí que você cai na real: mergulhado nos seus DVDs e CDs, nem percebeu que, aos poucos, seu apê estava virando um museu — tudo empoeirado, encardido, mofado. Você dá uma bronca na faxineira. Ela se defende: fazer faxina como, se o senhor esquece de comprar os produtos de limpeza? Então, você anota tudinho que ela diz que precisa, e vai às compras.

Eis que enfim você entende a máxima socrática: sei que nada sei. Você sabe o que é uma "rima leonina" ou uma "suspensão fenomenológica" ou um "big-bang" mas não sabe o que é um simples, um reles, um vil rodo. Está lá na lista da sua empregada: comprar um rodo. Mas o que é um rodo? (E se tivesse se lembrado de olhar no Aurélio antes de partir, veria que um rodo é "Utensílio de madeira com que se juntam os cereais nas eiras e o sal nas marinhas" e até aí teria morrido Neves...) Você espana a timidez e pergunta ao funcionário que está arrumando uns sabões em pó numa prateleira:

— Amigo, sabe onde ficam os rodos?

— Ali no fundo, junto das vassouras.

Em meio ao bafafá do mulheril (predominantemente) na busca zelosa dos menores preços, carrinhos de compras atravancando passagens, ofertas relâmpago pelo alto-falante, você se transporta de volta ao velho jogo da caça ao tesouro das colônias de férias de criança. Missão número um: encontrar a soda cáustica que, segundo sua faxineira, serve pra desentupir ralo, mas que você achava que só servisse pra se suicidar, e que o supermercado colocou tão escondido que você leva meio século para achar. Depois, desinfetante de armário, desengordurante de fogão e mil e um outros produtos de cuja existência você nem desconfiava — há mais coisas nas prateleiras dos supermercados do que pensa nossa vã filosofia.

Concluída a compra, exausto qual maratonista que acabou de vencer a São Silvestre, praguejando contra a Natureza que o dotou de apenas dois braços pra carregar aquelas cinco sacolas, o estômago ronca. E você, como que por instinto, adentra aquele restaurante a quilo, comidinha caseira, onde você não vinha há um bom tempo. Àquela hora da tarde (a compra, que você imaginava duraria meia hora, acabou se estendendo por hora e meia), passado o pico do almoço, o restaurante já não está mais tão lotado. Você ajeita suas compras numa mesa vaga e vai escolher a comida: feijão preto ou mulatinho? Arroz branco ou integral? Eternos dilemas.

Você leva o prato até a balança. Sua namorada visita-lhe o pensamento. Ao apanhar a bandeja sobre a qual a mocinha depositou o prato, você nota que pegou duas bandejas. Na tentativa automática de se desvencilhar de uma delas, um movimento em falso e... cataprum! CATÁSTROFE.

Cai a bandeja ao chão. Espatifa-se o prato. Espalha-se a comida.

Todos no restaurante cravam os olhos em você — como se você fosse o vilão da novela das oito (que é às nove).

Naquele momento você gostaria de ser dotado do poder de se teletransportar ao alto do Corcovado. Aquilo não é pegadinha do Faustão que você vê na televisão e morre de rir da pimenta nos olhos dos outros. São seus olhos que ardem.

O gerente solícito acode, não foi nada, a mocinha oferece uma toalha pra você limpar a calça, um funcionário materializa-se e desata a varrer aquela porcalhada toda. Tudo muito eficiente. Você pensa, daqui a cem anos todos estaremos mortos; recompõe-se (fazer o quê?), volta ao bufê pra encher novo prato (agora com menos apetite), dá graças a Deus que a casa não cobrou o prato destroçado...

Da segunda vez que você levou a namorada nova na sua casa, ela enfim — aleluia! — reparou nos seus DVDs e CDs.

Sobre o Autor

Ivo Korytowski: Ivo Korytowski nasceu no Rio de Janeiro em meados do século passado. Graduou-se e licenciou-se em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Publicou dois livros: Édipo (Editora Ciência Moderna), primeiro lugar do Prêmio Orígenes Lessa da União Brasileira de Escritores de 2003, e Português Prático (Editora Campus), livro de dúvidas e curiosidades da língua portuguesa ilustrado pelo Jaguar.

É tradutor profissional, tendo traduzido quase cem livros de variados assuntos e autores, entre eles Stephen Hawking, Richard Bach e Paul Auster. Mantém uma coluna sobre a língua portuguesa, Português Divertido, em www.mayte.us/portugues.htm.

< ÚLTIMA PUBLICAÇÃO | TODAS | PRÓXIMA>

LEIA MAIS


Um Deus que chora, por Leonardo Boff.

Um ano feliz nas locadoras: da tragédia de Wright à leveza de Mankiewicz, por Chico Lopes.

Últimos post´s no Blog Verdes Trigos


Busca no VerdesTrigos