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A CATÁSTROFE
por Ivo Korytowski
*
publicado em 02/06/2005.
Mateus, 8
Imagine que você arrumou namorada nova e levou ela para conhecer sua casa, crente que ia abafar (com seus DVDs, seus CDs). O tiro saiu pela culatra, e ela saiu de lá reclamando de tudo: que o armário fedia a mofo, que os tapetes estavam empoeirados (ela é alérgica), que você tinha que mandar a faxineira embora e contratar outra.
É aí que você cai na real: mergulhado nos seus DVDs e CDs, nem percebeu que, aos poucos, seu apê estava virando um museu — tudo empoeirado, encardido, mofado. Você dá uma bronca na faxineira. Ela se defende: fazer faxina como, se o senhor esquece de comprar os produtos de limpeza? Então, você anota tudinho que ela diz que precisa, e vai às compras.
Eis que enfim você entende a máxima socrática: sei que nada sei. Você sabe o que é uma "rima leonina" ou uma "suspensão fenomenológica" ou um "big-bang" mas não sabe o que é um simples, um reles, um vil rodo. Está lá na lista da sua empregada: comprar um rodo. Mas o que é um rodo? (E se tivesse se lembrado de olhar no Aurélio antes de partir, veria que um rodo é "Utensílio de madeira com que se juntam os cereais nas eiras e o sal nas marinhas" e até aí teria morrido Neves...) Você espana a timidez e pergunta ao funcionário que está arrumando uns sabões em pó numa prateleira:
— Amigo, sabe onde ficam os rodos?
— Ali no fundo, junto das vassouras.
Em meio ao bafafá do mulheril (predominantemente) na busca zelosa dos menores preços, carrinhos de compras atravancando passagens, ofertas relâmpago pelo alto-falante, você se transporta de volta ao velho jogo da caça ao tesouro das colônias de férias de criança. Missão número um: encontrar a soda cáustica que, segundo sua faxineira, serve pra desentupir ralo, mas que você achava que só servisse pra se suicidar, e que o supermercado colocou tão escondido que você leva meio século para achar. Depois, desinfetante de armário, desengordurante de fogão e mil e um outros produtos de cuja existência você nem desconfiava — há mais coisas nas prateleiras dos supermercados do que pensa nossa vã filosofia.
Concluída a compra, exausto qual maratonista que acabou de vencer a São Silvestre, praguejando contra a Natureza que o dotou de apenas dois braços pra carregar aquelas cinco sacolas, o estômago ronca. E você, como que por instinto, adentra aquele restaurante a quilo, comidinha caseira, onde você não vinha há um bom tempo. Àquela hora da tarde (a compra, que você imaginava duraria meia hora, acabou se estendendo por hora e meia), passado o pico do almoço, o restaurante já não está mais tão lotado. Você ajeita suas compras numa mesa vaga e vai escolher a comida: feijão preto ou mulatinho? Arroz branco ou integral? Eternos dilemas.
Você leva o prato até a balança. Sua namorada visita-lhe o pensamento. Ao apanhar a bandeja sobre a qual a mocinha depositou o prato, você nota que pegou duas bandejas. Na tentativa automática de se desvencilhar de uma delas, um movimento em falso e... cataprum! CATÁSTROFE.
Cai a bandeja ao chão. Espatifa-se o prato. Espalha-se a comida.
Todos no restaurante cravam os olhos em você — como se você fosse o vilão da novela das oito (que é às nove).
Naquele momento você gostaria de ser dotado do poder de se teletransportar ao alto do Corcovado. Aquilo não é pegadinha do Faustão que você vê na televisão e morre de rir da pimenta nos olhos dos outros. São seus olhos que ardem.
O gerente solícito acode, não foi nada, a mocinha oferece uma toalha pra você limpar a calça, um funcionário materializa-se e desata a varrer aquela porcalhada toda. Tudo muito eficiente. Você pensa, daqui a cem anos todos estaremos mortos; recompõe-se (fazer o quê?), volta ao bufê pra encher novo prato (agora com menos apetite), dá graças a Deus que a casa não cobrou o prato destroçado...
Da segunda vez que você levou a namorada nova na sua casa, ela enfim — aleluia! — reparou nos seus DVDs e CDs.
Sobre o Autor
Ivo Korytowski: Ivo Korytowski nasceu no Rio de Janeiro em meados do século passado. Graduou-se e licenciou-se em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Publicou dois livros: Édipo (Editora Ciência Moderna), primeiro lugar do Prêmio Orígenes Lessa da União Brasileira de Escritores de 2003, e Português Prático (Editora Campus), livro de dúvidas e curiosidades da língua portuguesa ilustrado pelo Jaguar.É tradutor profissional, tendo traduzido quase cem livros de variados assuntos e autores, entre eles Stephen Hawking, Richard Bach e Paul Auster. Mantém uma coluna sobre a língua portuguesa, Português Divertido, em www.mayte.us/portugues.htm.
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