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Sou brasileiro e não desisto nunca!

por Airo Zamoner *
publicado em 03/03/2005.

Apaga a luz de cabeceira e, num primeiro momento, a escuridão absoluta ocupa o espaço. Aos poucos, porém, uma réstia angular de iluminação difusa atravessa a cortina diáfana e se derrete pela parede.

O silêncio da noite não tranqüiliza a agitação de seu pensamento. Uma vontade proletária de retorno ao passado conflagra-se com a ambição da manutenção da fama.

Ao lado da cama, os livros ainda virgens, há anos esperam seu toque. Eles insistem, pensou aborrecido. Coloca a mão sobre um deles. No fundo, tinha vontade de que, lendo-os, pudesse entender alguma coisa misteriosa que o igualasse aos adversários e aos amigos. Mas nunca passa da primeira linha. As palavras são estranhas, ininteligíveis. Quem sabe em suas páginas descobriria do que falam seus adversários...

Sente um cansaço velho de continuar fingindo que entende o que nunca vai entender. Um cansaço de pedir tradução aos assessores que fingem não rir às escondidas. Desconfia dos amigos. Parece que cochicham por trás. Talvez abusem de meu poder e me ridicularizam, mas precisam de mim. O que foi que eu disse desta vez para causar tantos problemas? Pedem-me que me cale. Não posso me calar. Não é da minha natureza.

Uma preguiça, um enfado toma conta da vontade. A insônia, a claridade mortiça escorregando pelo quarto, a quietude da noite e as lembranças dos jornais daquela semana despejam nos embaraçados circuitos de suas paupérrimas reflexões, sentimentos inconclusos.

Ao lado, a mulher ressona ainda. Sente uma leve brisa pelo quarto, provocando um bafejo doce em seu rosto. Mas a cortina continua imóvel. Nem mesmo um sutil movimento. Intrigado, passa as mãos no rosto. Está gelado. Então a brisa é real. Localiza o interruptor do abajur. O claro apaga a brisa. Levanta-se. Sai para a varanda. Tudo está parado. As silhuetas das árvores não esboçam o menor movimento em suas folhas. A mulher mexe o corpo, reagindo ao incômodo inconsciente. Apaga novamente a luz. Ela se vira e se ajeita sob os lençóis e volta a ressonar.

Vontade de acender uma cigarrilha, baforar à vontade. Mas isto acordaria a companheira e teria mais um entrevero insuportável. Melhor é tomar uma boa dose... Fica feliz com a idéia. Sai de mansinho. Pé ante pé, prepara o copo de cristal reluzente. Despeja o líquido dourado numa dose comedida. Ergue o copo, procurando algum revérbero para atravessar e fulgurar no líquido. Gira-o, admirando os reflexos. Ávidos, os lábios respondem aos estímulos do desejo, lambendo-se. Sorve aos poucos, fechando os olhos. Sente o líquido fulvo escorregar de mansinho. A cabeça melhora, vazia de pensamentos, de reflexões, de ansiedades.

Agora sim! Amigos, inimigos, adversários e companheiros reverenciam sua imagem poderosa. Todos aplaudem um aplauso sincero. Um calor prazeroso desliza por dentro. Pousa o copo cuidadosamente. Vira-se em direção ao quarto. Pára. Volta-se para o balcão e vê o copo vazio. Despeja mais uma dose modesta. Olha contra possíveis lumes longínquos. Muda o plano. Enche-o até a beirada. Numa sofreguidão intempestiva, entorna-o por completo. Gotas indisciplinadas pulam, lambuzando-o, mas aumentando o prazer. Mal sente a ardidez trafegando pelo corpo e seus pensamentos apaziguados se refazem. Busca o caminho da alcova. Uma atração absurda, porém, chama-o de volta. A garrafa, ainda pela metade, o excita. Pensa no ruído indescritível que o líquido faria se o despejasse diretamente dali. Não resiste. Devagarinho, aproxima a boca da garrafa inocente, a sua boca desregrada. Goles barulhentos se sucedem e dois pequenos frisos de líquido deslizam, um de cada canto da boca envelhecida, ensopando as vestes noturnas. O desequilíbrio do corpo se compensa com passos para trás, até encontrar a parede. Encosta-se lânguido, satisfeito. Seus pés escorregam, o corpo pesado e fofo desliza até sentar-se no chão brilhante. Pernas semi-abertas, esticadas, ali permanecem, enquanto a mão incompleta agarra o litro vazio. Nenhuma brisa, nenhum pensamento, nenhuma reflexão perturbadora atrapalham o resto da noite.

O dia rotineiro retorna faceiro, clareando as vontades. A mulher assustada sai do quarto e o encontra balofo, feliz. Chama os criados que tentam ajudá-lo. A mulher enfurecida esbraveja contra o comportamento comprometedor. Ele balbucia arrastado: Sou brasileiro e não desisto nunca!

Sobre o Autor

Airo Zamoner: Airo Zamoner nasceu em Joaçaba, Santa Catarina, criou-se no Paraná e vive em Curitiba. É atualmente cronista do jornal O ESTADO DO PARANÁ e outros periódicos nacionais. Suas crônicas são densas de conteúdo sócio-político, de crítica instigante e bem humorada. Divide sua atividade literária entre o romance juvenil, o conto e a crônica, tendo conquistado inúmeros prêmios e honrosas citações.

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