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PROCOL HARUM e os fogos que luminosamente arderam

por Chico Lopes *
publicado em 03/03/2005.

(Para Ernane Catroli, no Rio de Janeiro)

Em minha busca constante de pessoas pela Internet, pelos caminhos postais, por telefone, que é principalmente uma procura natural por leitores (que escritor não é nada sem a cumplicidade do leitor verdadeiramente interessado), tenho conhecido toda espécie de gente. Tive também toda espécie de surpresa, em gradações de admiração e desapontamento. Pessoas como eu, que se atrevem a ser essa excentricidade em cidades do interior - um escritor - têm que apoiar-se numa intensa imaginação, numa vida de leituras, de apreciador de arte e de correspondente de escritores ou outros artistas distantes, porque a vida cultural, refinada, livre, profunda, infelizmente, está em outra parte. Os grupos de afinidade que podem se constituir em cidades pequenas, para os artistas, serão sempre frágeis, minúsculos, e facilmente serão destruídos pela mediocridade maciça ao redor. Só idealizam o interior os metropolitanos que nunca viveram muito tempo nele, nunca ficaram à mercê de sua aridez. A "bem-aventurada tranqüilidade" é só o verniz de um Inferno de privações, de incompreensões, preconceitos e jequices arrogantes.

Assim, os caminhos que os correios, a Internet e o telefone têm me oferecido são os mais sinuosos e estranhos - podem dar em conversinhas excitantes, mas estéreis, e geralmente dão, ou podem se abrir para contatos realmente gratos e imprevisíveis.

Publiquei aqui no "Verdes Trigos" uma crônica, "Rachel de invisíveis jardins", em homenagem a Rachel Jardim, grande escritora mineira de "Os anos 40" e "O penhoar chinês", hoje afastada da vida literária, e a crônica foi lida por um amigo de Rachel, do Rio de Janeiro, que tornou-se, subitamente, um grande amigo meu também.

E isso de um modo curioso, porque fundamentalmente nascido do culto a uma escritora que hoje em dia não se menciona mais nos fúteis cadernos culturais. Mencionei a ele um disco que eu ouvia muito em fins dos anos 70 lá em minha terra natal, Novo Horizonte, quando, ainda jovem e embalado pelos sonhos do "progressive rock" daqueles tempos, rendi-me ao encanto do grupo inglês Procol Harum, que tinha lançado, naquela década, o essencial "Live in Concert With The Edmonton Simphony Orchestra". Ouvia esse disco enquanto pintava numa varanda de uma chácara de uma rua um pouco distante do centro de Novo Horizonte - era em declive, e terminava, antes de chegar a um riacho, numa paineira cujas flores rosa-lilás eu pintara algumas vezes, achando-as de algum modo parecidas às cerejeiras japonesas que Van Gogh tanto amava. Ouvia o disco extasiado com aquelas belezas - poucas vezes (ou melhor, nunca mais) encontrei fusão tão perfeita do rock e da música sinfônica quanto nesse vinil da A&M - Crysalis lançado em 1972. O disco me fora emprestado ou eu próprio o tivera e emprestara, e o perdera. Nunca mais o revi em lojas.

Pois, meu novo amigo, uma pessoa ocupada, deu-se ao trabalho de procurar esse vinil em lojas especializadas do Rio, encontrou-o e, mandando-o em Sedex para mim, fez um desses gestos que selam uma amizade em recorte profundo: um presente que significa todo um Passado.

Um presente acima do Tempo

Tenho 52 anos e minha geração, privilegiada por ter tido nos rádios primeiro a Bossa-Nova, depois o Tropicalismo e os Beatles, atravessou os fins dos anos 60 e os 70 debaixo de uma ditadura cujas mazelas são bem conhecidas (e deram em lembranças bem aproveitadas por alguns oportunistas medíocres de hoje em dia), mas minha turma era de música, de poesia, de desenho e pintura - ninguém queria ser salvador de oprimidos ou foi torturado, que me lembre (só éramos torturados de fato pelos preconceitos das cidadezinhas).

Estávamos bem servidos em música, mesmo os Beatles tendo acabado em 1970. Foram anos de Caetano, Gil, Led Zeppelin, Pink Floyd, Genesis, ELP, Yes, e isso adentrando os 80, até que a onda "punk", mais comportamento que música, decretou que a arte que o rock tinha atingido era pretensiosa e chocha e decidiu instaurar uma democracia de crueza, baixeza, ignorância e analfabetismo musical cujos estragos foram consideráveis- qualquer idiota, de brinco, cabelo espetado, vomitando e se drogando como Sid Vicious, passava a ser um oráculo ouvido e respeitado por alguns críticos musicais de relevo; elevou-se o bandidinho inculto e anti-musical de rua a uma categoria de sublime, e essa má-fé persiste até hoje. Havia um pouco de razão na crítica ao "progressive rock", que já degenerara mesmo em coisas como Rick Wakeman, um organista cafona especializado em lantejoulas e vidrilhos sinfônicos, e nas masturbações infindáveis do Yes, por exemplo. Mas, o Procol Harum estava acima disso.

Meu amigo sem rosto, sem cheiro, por enquanto apenas letras na tela do micro e uma voz no telefone, me devolveu a voz de Gary Brooker (um dos maiores cantores, e dos menos lembrados, do rock) e as letras densas de filosofia, ironia e poesia de Keith Reid. O Harum era um grupo que recebia pouca publicidade no Brasil - não tinha ninguém cantando com cobra no pescoço ou disparando aviões em cima do público. Grandioso, sabia ser discreto. Estava, com certeza, mais interessado em música que em "performances".E, nesse disco com a orquestra sinfônica de Edmonton mais os Da Camera Singers, faz a ponte entre o "clássico" e o "pop" com dignidade e classe invejáveis. Uma faixa como "Salty dog", com sua poesia dos homens do mar que foram a partes desconhecidas da Terra, "pátrias dos navios que voltam para morrer", foi feita para ser sempre reouvida.

Além desse vinil, meu amigo mandou-me um Procol que eu não conhecia, também daqueles anos - o "Grand Hotel", CD cujas canções por vezes roçam o sublime, sem exagero. Uma delas, com introdução da voz de pássaro de Christine Legrand, dos Swingle Singers, é particularmente forte - chama-se "Fires (which burnt brightly)".

Começa com "This war we are waging/is already lost..." Que guerra terá sido essa que nós, idealistas da arte dos anos 70, perdemos? Pode-se pensar no que quiser. A melancolia de guerra perdida, de tempo perdido, de vida aplicada em sonhos que nada deram, está lá. "Once proud and truthful/ now humbled and bent/ Fires which burnt brightly /now energies spent…" Sim, sim, todos nós "ardemos luminosamente" e como andamos curvos e humilhados diante do mundo que está aí, de Big Brothers e Severinos Cavalcantis!

Perdedores daquele sonho, substituído pelos vastos shoppings de consumismo febril e vazio das décadas posteriores aos 70, estamos vivos para lembrar ao menos um pouco daquela beleza toda. Que, como toda beleza verdadeira, pertence à categoria do Eterno e pode nos retornar, inesperadamente, através de um gesto de amigo.

Sobre o Autor

Chico Lopes: Chico Lopes é autor de dois livros de contos, "Nó de sombras" (2000) e "Dobras da noite" (2004) publicados pelo IMS/SP. Participou de antologias como "Cenas da favela" (Geração Editorial/Ediouro, 2007) e teve contos publicados em revistas como a "Cult" e "Pesquisa". Também é tradutor de sucessos como "Maligna" (Gregory Maguire) e "Morto até o anoitecer" (Charlaine Harris) e possui vários livros inéditos de contos, novelas, poesia e ensaios.

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Francisco Carlos Lopes
Rua Guido Borim Filho, 450
CEP 37706 062 - Poços de Caldas - MG

Email: franlopes54@terra.com.br

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