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Sem pecado à beira do Araguaia
por Adelto Gonçalves
*
publicado em 07/08/2006.
Quinhentos anos depois, não se pode dizer que ainda hoje não seja assim: é bem diferente o comportamento feminino que se vê aqui nas ruas daquele que é habitual no Norte do planeta, o que tem levado, muitas vezes, guardas de aeroporto a constranger moças de indumentárias mais ousadas, ao confundi-las com prostitutas. Mas, por trás das paredes, a natureza humana continua a mesma tanto lá como cá.
Em Mulheres do Rio, livro que reúne sete contos dedicados a mulheres de personalidades diferentes, mas comportamento liberal, todas brasileiras da gema, Antônio José de Moura faz uma viagem à sexualidade dos dias de hoje, que, a rigor, não difere muito daquela em que o Éden parecia perdido nos confins do Brasil.
Seus contos são ambientados no rio Araguaia, a principal atração turística de Goiás, com seus quilômetros e quilômetros de praia que aparecem ao final de abril e começo de maio, quando as águas baixam e os peixes começam a formar a piracema. Durante a temporada de julho, somente Aruanã, a 300 quilômetros de Goiânia, recebe cerca de 300 mil turistas.
Sem contar o moderno complexo Jaburu, no distrito de Luís Alves, as adjacências de Aragarças e outras localidades, que acolhem milhares pessoas de Goiás e de outras partes do Brasil. As praias são urbanizadas e recebem energia elétrica e até água potável, transformadas pelas prefeituras locais em campings completos, com segurança garantida pelas autoridades policiais.
É nesse paraíso terreal que Moura localiza o conto que abre Mulheres do Rio, “Dina ou vamos caçar tracajá”, e coloca um natural do lugar a contar as suas peripécias vividas à beira-rio, ao oferecer seus préstimos aos endinheirados da cidade que lá chegam dispostos a esquecer as tribulações do dia-a-dia. Quase sempre são empresários ou executivos de empresas nacionais ou multinacionais que levam suas mulheres que, já cansadas da monotonia conjugal, muitas vezes, arriscam aventuras com os homens do local.
O falar do personagem, porém, nada tem a ver com os tropeiros que Guimarães Rosa (1908-1967) transportou para os seus livros. É de alguém que teve lá boa educação ou alguma leitura, como se depreende da descrição que faz de Dina, a fêmea que lhe coube numa determinada temporada: “corpo tão bem proporcionado como se supõe tenha sido o de Cleópatra entregando-se a César e finalmente a Marco Antônio, em plena consciência da nudez a serviço da ambição”.
É ao mesmo tempo o linguajar do brasileiro médio de hoje: “Já me envolvi com um monte de piranhas do asfalto às margens deste rio ou à margem das cidades, porém nunca vi uma que cumprisse tão perfeitamente quanto Dina a porção que lhe toca no esporte mais popular do planeta. Sara Bernhardt da fornicação”.
Em “Virgínia”, o conto seguinte, é outro tipo de brasileiro médio que encontramos às voltas com suas conquistas, desta vez, uma intelectual, poetisa, cheia de curvas. Em “Princesa”, o protagonista é um jovem estudante esquerdista dos anos 60 ou 70, mantido pela mãe, que descobre os encantos de sua faxineira, uma “afro-bendita Vênus do Araguaia”.
O estilo de Moura seduz e diverte, levando o leitor a saborear cada frase marcada, muitas vezes, por um humor irônico, mas bem brasileiro. Esse estilo seco e direto, outras tantas vezes, descamba para uma certa grosseria, mas que não é do autor, mas das personagens que cria, gente carregada de um vezo machista. Claro que tudo isso é intencional e, portanto, não constitui algo inerente ao autor.
É que em Goiás, estado eminentemente agrícola, embora governado por uma jovem capital, Goiânia, extremamente moderna, com menos de sete décadas de existência, até não muito tempo atrás, ainda predominavam relações arcaicas, de que alguns resíduos permanecem. “No interior de Goiás”, diz Moura, “boa parte da população conserva fortes vínculos com o campo, o que significa que o moderno convive com o anacrônico, o Toyota com o carro-de-boi, o telefone celular com o berrante e assim por diante”.
Para o ficcionista, esses substratos formam e engrossam o caldo de cultura que dificulta a erradicação de tabus, preconceitos e tipos de comportamento “até mesmo entre pessoas ilustradas — ou lustradas por algum verniz cultural”. No Araguaia, esses tabus se fazem notar com a mesma veemência e exuberância da paisagem e das águas, garante.
“Portanto, ao autor não compete abolir, sonegar, deturpar ou mascarar esta realidade, intrinsecamente machista, que permeia as relações pessoais neste País já definido como um gigantesco arquipélago cultural, visto que o papel do testemunho (do escritor) deixa de ter um sentido quando já não é testemunha de sua época”, diz Moura, citando o escritor cubano Alejo Carpentier (1904-1980).
Antônio José de Moura, nascido em Goiás, bacharel em Direito e jornalista profissional durante mais de 20 anos, já escreveu três romances — Dias de Fogo, de 1983 (4ª edição, 1991), Sete Léguas do Paraíso, de 1989, ambos editados pela Global, e Umbra, de 1996, pela Marco Zero, de São Paulo. Toda a sua obra, inclusive Dias de Fogo, que já vendeu mais de 30 mil exemplares, encontra-se esgotada.
Publicou dois livros de poesias, Quilômetro Um, de 1965 (Livraria Brasil Central, de Goiânia), e Porta sem Chave, de 1970 (Edição do DEC, Goiânia), e outros dois de contos: Notícias da Terra, de 1978 (Edições Símbolo, de São Paulo), e Magrinha, de 2001 (Clíper Editora, de São Paulo), com o qual obteve o Prêmio Teresa Martin de Literatura de 1999. “Magrinha” ressurge, agora, entre os contos de Mulheres do Rio. Com Mulheres do Rio, Moura ganhou o Prêmio Literário Cidade do Recife de 2000.
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MULHERES DO RIO, de Antônio José de Moura. São Paulo: Global Editora, 165 págs., 2003.. E-mail: global@globaleditora.com.br
Sobre o Autor
Adelto Gonçalves: *Doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003).E-mail: adelto@unisanta.br
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