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Os bruxos nos governam
por Airo Zamoner
*
publicado em 08/02/2005.
Pequena brisa, intermitente, se esforçando para barulhar. Não consegue. Vencida, faz parceria cúmplice com o cenário e me leva a cochilos breves. O corpo se sacode brusco, querendo acordar. É o efeito do jogo de forças misteriosas entre o dorminhocar e o alerta. Abro os olhos e o cenário se movimenta. Nesse torpor de início de tarde, nada tem significado. Tudo é desimportante, passageiro... O grande perigo é cruzar o ponto crítico. Atravessar a fronteira irresponsável entre a realidade afogada pelo cochilo, e o sonho desinibido que luta para assaltar a atenção.
É nesse amálgama cerebral que reside a pastosa matéria prima a me resgatar a juventude inconformada de minha história.
As pessoas passam. Velhos bruxos, novas bruxas que riem, sacodem, ameaçam com suas diabólicas ferramentas. Num átimo, voltam as suas aparências corriqueiras. Ninguém percebe a transformação efêmera. Não são velhos bruxos, são príncipes, cheios de abnegados idealismos. São fadas, lindas, comportadas, dispostas a se voltar para cada necessidade a sua volta.
Meu cochilo, minhas fadas e príncipes. Meu alerta, minhas bruxas, meus bruxos.
Em minha infância, jamais tinha visto um bruxo, até aquele dia inesquecível. Foi uma recepção para alguém ilustre, uma grande autoridade que chegava à cidade. Não me lembro que autoridade era. Meninos e meninas, eu no meio, trazidos por catequistas ou professores, enfileirados à força para o cumprimento pessoal. Dádiva bondosa daquela alta autoridade... Era, supostamente, um anjo, vestido de bondade. Roupas ricas e simbólicas da importância insofismável de seu saber e autoridade. A fila se esgota. Deparo-me de frente com a autoridade. Ofereceu-me sua mão anelada. Ouro e pedras preciosas em luta para se exibirem...
Nesse dia, vi assustado que o anjo se vestia de bruxo. Não! Naquele dia vi que o bruxo se vestia de anjo. Golpe violento para um menino que despertava para a justiça, para a igualdade, para a alegria de um mundo integralmente bom. Ao pegar sua mão, cumprindo o forçado ritual, meu coração de menino viu o olhar faiscante de avareza, desonestidade, malvadeza, luxúria, falsidade, sobressaindo-se num repente, matando minha inocente imagem do mundo bom. Desnudou-se em minha frente a autoridade-bruxo, vestida de bruxo por baixo, de anjo por cima. Mas eu vi a roupa de baixo. Eu vi o bruxo.
É essa autoridade-diabo que me persegue, que nos persegue vida afora. Esses bruxos e bruxas travestidos de príncipes e fadas nos tiram na calada de suas consciências metalilficadas, o nutrido e acalentado idealismo ingênuo de salvar a humanidade.
Jamais pude esquecer aquele gosto prematuro do caldo que se prepara nas torres, nos porões, nos altares, nos salões aveludados, nas mesas fartas, para depois ser oferecido a nossa fantasia conformada com a heróica miséria.
Confesso que lutei uma vida, a única de que dispunha, para ver o "rei nu". Não consegui. Eles sempre estão vestidos, mas trocam de fantasia quando se distraem por um segundo. Só uma coisa não admitem jamais: não querem andar nus. Essa é a única vergonha que os assusta.
Em minha alternância entre o cochilo e o alerta, posso ver, mesmo que por um brevíssimo momento, as verdadeiras vestes com que desfilam. Eles, por sua vez, quando alternam o cochilo e o alerta, sentem medo. Medo de nosso olhar sarcástico de quem sabe o que vai acontecer um dia. Entreolham-se, conferindo seus trajes. Uma fina réstia de medo parece penetrar em seus domínios.
Sobre o Autor
Airo Zamoner: Airo Zamoner nasceu em Joaçaba, Santa Catarina, criou-se no Paraná e vive em Curitiba. É atualmente cronista do jornal O ESTADO DO PARANÁ e outros periódicos nacionais. Suas crônicas são densas de conteúdo sócio-político, de crítica instigante e bem humorada. Divide sua atividade literária entre o romance juvenil, o conto e a crônica, tendo conquistado inúmeros prêmios e honrosas citações.< ÚLTIMA PUBLICAÇÃO | TODAS | PRÓXIMA>
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