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Trovão na viola

por Leonardo Teixeira *
publicado em 11/11/2004.

Entre as árvores tortas daquele solo fulvo, depois do Morro do Maçado e das curvas do caminho, onde escorre fino o córrego Guará, tentando vencer a seca, cravado no ermo, afastado de tudo – não fosse o brejo mateiro das cercanias – Tião Galego aprumou seu rancho e sua choça de adobe.

Para vencer a guerra de silêncios, Tião Galego, com o arrebatamento da finada Anajoana, resolveu arrumar um tomba-litro farejador, para ver se o entretinha, se a saudade amainasse naquele estado de amodorramento. Tião Galego era velho, bem enxuto de carnes, a pele adusta de tanto sol, como se dia a dia se enfornasse na estufa constante para ser amornado na boca da cova, assim como Anajoana, no fim de seus dias.

Naquela altura do tempo, Trovão já era cachorro crescido e tornou-se a única companhia do velho Tião. O nome surgiu desde pequeno, com a mania de uivar para o ribombo dos trovões. O velho tinha um olhar opaco e fundo, ao contrário de Trovão, olho vivo de bicho do mato, olhar procurativo. O velho era banguela, o cão tinha dentes de prego, acostumados a perseguir seriemas, tatus e lagartos. A discrepância se aglutinava em estreito afeto e profunda amizade recíproca.

A casa mais próxima dali ficava a cinco quilômetros. O único trieiro era visto ao longe pela inclinação do morro abaixo. Próximo à barra do horizonte, na orla da estrada, subia um trêmulo nevoeiro luminoso, que o mormaço solar irisava. Vez por outra se via uma imagem desfigurada, minúscula, que parecia delinear os traços de Anajoana, mas Tião Galego rompia logo a quietude para dizer “bobagem, é miragem da estiagem!”

Tião Galego era carpinteiro, fazedor de viola. Adorava o serviço de lapidação da paciência. Com as sobras fazia bonecos, bois, cachorros para Trovão brincar. Ganhava uns trocos na cidade, onde recebia as encomendas das violas. Dava folgado pro sal, alho, açúcar e café. Nos meses que não tem “r” (maio, junho, julho e agosto), de preferência o final de junho que é início do inverno, para a madeira não ficar “gripada”, durante a lua minguante, que é para ser mais durável, flexível e não carunchar, porque viola com caruncho fica “leprosa”, esse era o segredo da fabricação. Tião Galego usaria cedro ou jacarandá, mas acabou arranjando um caixão velho de pinho sem serventia e fez as duas tampas da viola. O caixão virou viola. Usou apenas canivete, barbante, fogo e cola vegetal de sumbaré. Estava tudo no padrão dos conformes. Cavalete, filete, rastilho de taquara, pestana, braço, cravelha de criuvinha, cordas de aço, depois de quase cinco estações estava pronta a sua viola nº 5 de dez cordas. Essa sim, com tanto capricho, não venderia a ninguém.

Dizem que violeiro passa a metade da vida tentando afinar a viola e a outra metade toca desafinado mesmo. Para o Tião Galego nada disso importava. Só tinha os ouvidos do Trovão por perto. Era sempre ele que se empolgava com a cantoria, deitava perto do velho e ficava escutando com alegria. Trazia até os bonecos de madeira para ouvir também.

“Deixei pra traz o mato e a poeira,
ficou triste o meu coração,
o progresso fez a vida traiçoeira,
que saudade do meu sertão”

Naquele caixa-prego do calcanhar do Judas, era preciso tocar uma hortaliça, pescar e de vez em quando caçar. As pacas, os caititus, os veados e até os tatus andavam muito ariscos, as arapucas, os mundéus e outras armadilhas ficaram praticamente ineficazes. Foi nesse entremeio que Trovão engajou-se como caçador.

A vontade de um treco vermelho assado era tanta que Tião já preparava os gravetos. Como Trovão conhecia os trejeitos do velho, o diálogo corporal era compreendido ao menor movimento de uma sobrancelha. Ficou a postos, correndo em zigue-zague. Era só esperar Tião colocar o chapéu e sair pro capoeirão. Eis o início da acossa.

O costume era Trovão disparar pro ermo e sumir por um tempo. Voltava depois com um bicho no beiço, contando vitória. Às vezes ficava estático, hipnotizado na vertigem de um animal desavisado. Deitava rasteiro com o prosseguimento milimétrico. Quando ultrapassava o limite do invisível, o outro bicho dava o sinal de descobrimento e corria. Trovão era bom de patas. Poucas vezes perdia corrida. Tatu é que dava trabalho, se entocava no buraco fundo e estreito. Trovão cavava as tocas e o encarapuçado ainda tinha outra reserva. O cachorro, coberto de terra, arfante, procuraria outro menos astuto.

Aquela vez Trovão demorou bastante. Tião Galego ficou preocupado. A vontade de comer era tanta que já tava no goto o quitute. O sol mergulhou nas longínquas colinas e nada do cachorro. A lua clareou aquele campestre. Apesar de não ter mais o viço, a rigeza e o pulso de outrora, partiu sem detença em busca do parceiro. Apesar do vigor daqueles caminhos soturnos, Tião engoliu um toco de coragem e adentrou a brenha suja. Como os cacarejos miúdos e distantes dos galos anunciavam a proximidade do dia, Tião retornou cabisbaixo. Sentado no toco da gameleira, ainda forçou as vistas para alcançar qualquer movimento parecido com seu companheiro. Sem querer, o cansaço pregou as pálpebras num sono manso de boi antigo.

Quando a lanterna do sol apontou os olhos, Tião tomou um café requentado, engoliu um doce de buriti, pegou o embornal com algumas tranqueiras e foi avizinhar as outras moradas. Nenhum sinal. Cachorro bom de faro daquele, e porte de bezerro, não faria papel de troncho para se perder por aí. Ainda de tarde resolveu seguir as pegadas e viu que tinha um rastro de ida sem o par de volta. Lá na frente um treco roliço, possivelmente um ingazeiro tombado, vedava o rastro no trieiro.

Eis que um ronco, urrado típico das sucuris, rompeu o silêncio do matagal e se encantou com o vento, invadindo os ouvidos do velho. Tião aproximou-se e vislumbrou aquela imensa sucuri, devia ter uns onze metros. Ela estava quieta, e, pelo calombo no meio do corpo serpenteado, percebia-se que a digestão ainda demoraria um bocado. Devia ter comido um veado qualquer. Tião Galego buscou o enxadão e o golpe partiu a cabeça da sucuri, que media um palmo e meio. Teve a idéia de vender o couro, mas descobriu que Trovão jazia todo quebrado, no meio da gosma digestiva. Os olhos do velho se esbugalharam como só se viu com o passamento de Anajoana. A córnea umedecida deixou pingar a gota dolorida do desespero. Era preciso construir um caixão para o jazigo. Tião Galego usou algumas tábuas, desmanchou a viola e aproveitou a madeira. A viola virou caixão. Lá dentro as lembranças da cobra, de Trovão, dos bonecos de madeira e da viola ficaram amarradas pelas cordas de aço, incorporando a musicalidade da tristeza silenciosa. Aquela foi a última vez que Tião Galego mexeu com carpintaria.

Sobre o Autor

Leonardo Teixeira: Nascido em Goiânia/GO, aos 21/03/1979, com 24 anos, Leonardo Teixeira é bacharel em direito pela UFG, autor do livro Mergulhando no Pensamento (poesias críticas - 1 premiação nacional) e do livro de contos Afinadores de piano (contos - 10 premiações nacionais e 1 internacional), membro da União Brasileira de Escritores, seção de Goiás, membro correspondente da Academia Taguatinguense de Letras, membro titular do Clube dos Escritores de Piracicaba-SP, cronista quinzenal e eventual articulista do jornal O Popular.


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