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De Amor e de Selva (o ato de escrever)

por Vera Carvalho Assumpção *
publicado em 05/11/2004.

Conto premiado no Concurso de Contos de Paranavaí.
No próximo dia 20/11/2004, Vera receberá o prêmio e participa da festa.


"Era como se a morte fosse o nosso bem maior e final, só que não era a morte, era a vida incomensurável que chegava a ter a grandeza da morte." Clarisse Lispector

Num local escurecido pelas frondosas árvores, Cloé reconheceu por entre o gradeado, uma forma animal muito escura. Dois olhos verdes brilhavam, observando a por entre as grades. Era um maravilhoso leopardo negro, que começou a caracolar, possuído por uma frenética excitação que ela não tentou decifrar. Não sabia, não podia saber que ele intuía amor e crueldade, e o caloroso prazer de despedaçar.

Cloé sentiu grande desejo de alisar lhe o pelo lustroso. Quis enfiar a mão através do gradeado da jaula, mas o medo a estancou. Passada a excitação de olhá la pela primeira vez, a fera se impôs como uma estátua negra, com gelados olhos verdes pregados nela. Sobrepuseram se a eles, os olhos de um homem que aparecia em sua imaginação e a tocava, excitando a, alvoroçando lhe os instintos, até que a penetrou com um membro forte e quente, embebendo lhe o corpo em golfadas de prazer. Todo o seu ser estava repleto de delícias e estremeceu ao soar da campainha do telefone. Cloé tateou ao redor. Quem haveria de ser naquela hora! A campainha era insistente e a despertou com seu tilintar vibrante. Ela colocou o fone no ouvido. Era a telefonista do hotel a acordá la no horário que ela própria estipulara. Droga!, pensou. Era preciso sair do aconchego do sonho, levantar se e começar a trabalhar na reportagem. O computador se sobressaía na penumbra esverdeada do quarto. Ela lançou lhe um olhar odiento e pulou da cama direto para o banho. A água envolveu lhe o corpo.

No dia anterior, Cloé havia embarcado para Manaus contratada para escrever o texto da reportagem que se faria sobre os índios Zuruarás, uma extravagante tribo de suicidas. Sobrevoara a floresta riscada de rios, envolta numa pálida neblina de sonho. Tão logo pôs os pés fora do avião, sentiu a espessura da umidade entranhando se em seu corpo, colando lhe a roupa na pele ao mesmo tempo em que um êxtase invadia lhe a alma. Não conseguiu, no entanto, avaliar o quão fundo mergulharia em tudo aquilo.

No fantástico hotel, na frescura do ar condicionado, no meio do movimento de turistas com seus odores de outras terras, sobrepunha se o cheiro da umidade e da folhagem da floresta. No quarto, ela ajeitou a bagagem, tomou um banho e vestiu se como os turistas estrangeiros. Penteou os cabelos, refez a maquilagem e saiu, lenta e colorida. O ensolarado do fim de tarde tinha a lentidão desfocada e submarina de um sonho. Os corpos seminus, estirados ao redor da piscina, a atraíram.

A equipe que faria a reportagem reunia se ali. Ao encontrar os companheiros de trabalho, Cloé foi apresentada a um missionário vindo de um país nórdico e gelado, ele e mais dois companheiros eram os únicos seres civilizados a pesquisarem e escreverem sobre os Zuruarás. De imediato, ele causou lhe uma sensação de estranheza e de fascinação com seu olhar verdíssimo e uma amabilidade excessiva. Pareceu lhe um homem vindo de outro planeta, com a pele clara castigada pelo sol, os cabelos de uma palha de milho rebelde e, mesmo sorrindo, seus olhos mantinham se gelados. Amabilíssimo, ele cumprimentou a, convidou a a sentar se e serviu lhe bebida.

Entre golinhos de cerveja, com o sol do fim da tarde que tornava as pessoas ao redor da piscina iluminadas e felizes, foi se falando que estava em moda fazer reportagens sobre índios. Bom seria trabalhar com os índios treinados para encantar turistas!, logo ali ao redor do hotel, dançando e se vestindo ao gosto de quem os filmava. Não fosse o fato de serem bem pagos, jamais se embrenhariam até onde viviam os Zuruarás, o cu do mundo! As águas do rio estavam baixando, assim que chegassem a um nível razoável, adentrariam a mata e assistiriam a um suicídio! Até lá, poderiam contar com o missionário, arquivo vivo e único de sua história. Os outros dois companheiros haviam retornado ao seu país.

As vozes se misturavam na brisa da tarde, e o missionário ouvia tudo com um sorriso enigmático, como se fosse um homem sem passado, sem história, como se visse o mundo pela primeira vez. Foi ao narrar sua vida na selva e o contato com os índios suicidas que se humanizou. Com um sotaque pedregulhoso, informou que também ele, ao vir pela primeira vez visitar os Zuruarás, sentiu se em outra galáxia. Teve de se embrenhar fundo na selva para tomar gosto! A tribo era estranhíssima. Não no modo de ser, mas filosoficamente! Acreditavam que a morte era o único caminho para um mundo de fartura e felicidade. Tinham como meta se suicidar enquanto jovens, e a maioria o fazia. Enquanto viviam, os velhos que não haviam tido coragem ou oportunidade de beber o extrato de raízes venenosas, sabiam que seus espíritos estavam condenados a vagar sem paz por toda a eternidade.

Por ser Cloé a encarregada do texto, o missionário dirigia se especialmente a ela. E seus olhos verdíssimos e gelados a atraíam de uma maneira irrevogável. Os relacionamentos de Cloé sempre tiveram uma distância que seus parceiros pareciam não sentir, mas que se interpunha em sua felicidade. No clima úmido da selva, visualizou que no olhar do missionário, no fundo das palavras que a informavam sobre índios suicidas, animava se um outro reino, respirava um homem diferente, que lhe exacerbava a capacidade do sonho. Seria ele um homem capaz de lhe proporcionar o mesmo gozo do sonho? Tal pensamento provocou lhe um susto que fez com que voltasse a sentir a água do chuveiro escorrendo-lhe pelo corpo. Naquela primeira noite na selva sonhara o leopardo negro e seus olhos gelados eram os mesmos do missionário. Tal certeza a atordoava. Mas, terminado o banho, Cloé estava refeita das imagens da noite e pronta para o dia.

No restaurante, fartou se na mesa de iguarias do café da manhã e foi até a piscina. Lá estava o missionário. Ele abriu um sorriso e convidou a para um passeio pelo hotel. Havia um mini zoológico. Mal amanhecera e o sol brilhava e esquentava com toda sua imponência. Ela divertiu se com o ar maníaco dos macacos e o olhar amarelo e inteligente da coruja. Por fim, parou na jaula dos leopardos malhados. Nenhum dos dois tinha a ferocidade do negro animal do seu sonho. Enfeitavam o hotel e distraíam os turistas com sua beleza de gatos gigantes.

Enquanto caminhavam por entre as jaulas, ela foi se dando conta que assistia a um teatro de imagens selvagens dentro de tantas jaulas, ladeadas por frondosas árvores da selva que faziam fundo à outra imagem de alegres jeans e camiseta branca do missionário. Ele ia se detendo exatamente à distância que seu olhar requeria, voltando se com um e outro comentário sobre as feras. Então foi ela quem não pôde perceber que sua lenta e reflexiva passagem de jaula em jaula a transformavam em uma mulher muito querida a ponto de obrigar o homem ao seu lado a fechar os olhos e lutar para não toma la e apertá la nos braços, levando o à loucura de beijá la frente a todas aquelas feras!

Sem perder o ar de homem vindo de outro planeta, o missionário lamentou o exíguo espaço em que viviam os leopardos. Cloé pensou em interrompê lo para lhe dizer o quanto ele a fascinava. Percebeu a tempo que o queria demais para trincar com palavras a superfície de felicidade que ia se criando.

Retornando à piscina, ela sentiu se excitada pela revelação de que uma coisa imensa e irreparável começava a acontecer em sua vida. Encontraram o pessoal falando sobre o equipamento necessário para filmar os Zuruarás e a espera pelo baixar do nível das águas. A possibilidade de assistir e filmar um suicídio os excitava. Tomariam um pequeno avião, e depois ainda teriam dois dias em canoa. Cloé deparava se com o desafio de contar sua história de forma dramática a fim de captar a atenção do público! O missionário era o único civilizado a falar a língua dos Zuruarás. Era o arquivo vivo e tinha resposta para tudo que lhe era perguntado. Por um momento, Cloé pensou que ele poderia estar inventando boa parte do que falava. A filmagem do espetáculo do suicídio se sobreporia às duvidas. Cabia a ela as palavras que intensificassem as emoções de um público que estaria passivamente em frente ao aparelho de TV. Seria ela a escrever a história de uma tribo que não conhecia a escrita.

Ao mesmo tempo em que idealizava o texto, Cloé pensou que, no clima da selva, o missionário lhe exacerbava as querências da carne, o que lhe inspirava um novo ânimo. Seria o desejo por um homem o ímpeto da vida? A razão profunda de tudo! E a voz daquele homem explicava que os Zuruarás não se matavam num ímpeto de vida, nem mesmo numa batalha, ou num ato terrorista. Cortavam a raiz de uma planta e ficavam batendo e jogando água até extrair lhe o veneno. Era um espetáculo lento e agoniado. A tribo se reunia para participar da cena. Engolido o veneno, num ritual extravagante, levantavam os braços do moribundo numa oferenda melancólica. Tinham plena convicção de que a morte os levaria para uma vida melhor. Não se matavam alucinados pela paixão. Eram prisioneiros da própria tradição.

A equipe se excitava com a possibilidade de filmar o suicídio e Cloé vivia um êxtase de regalias do hotel e da selva. Divagava que ao ter se casado aos dezoito anos, sentira a vida dividida. De um lado, o mundo de crianças berrando e serviços domésticos, por outro, não desistia de ser gente. Quis ter um trabalho onde pudesse criar. Conseguira uma pequena coluna num jornal de bairro, onde passou a escrever pequenos textos para distrair mulheres como ela. Levou algum tempo até que, paralelamente, se tornasse corajosa a ponto de colocar no papel uns poucos sentimentos. Começou sendo superficial e insincera. Mesmo distante de épocas de censura e ditadura, ela colocara lâminas imaginárias sobre certas faixas da vida e recusava se terminantemente a descobri las. E foi quando uma dessas faixas estancou lhe os pensamentos que ela viu na reverberação da água da piscina a figura do missionário. Voltou se para sua figura real, estirado numa espreguiçadeira e fitou o com despudor.

Os integrantes da equipe tinham de esperar as águas do rio baixarem para que a canoa pudesse circular pelos pequenos riachos e matavam o tempo entre cervejas, petiscos e ondas artificiais da piscina. Ela se interessava por tudo o que diziam, mas seus sentidos estavam no missionário. O falar sobre uma tribo de suicidas, a água do rio, a brisa morna e úmida da selva faziam com que uma transparência paulatina a afundasse nele, tornando o cada vez mais um homem sonhado. Como se um jogo de nuvens no céu alterasse bruscamente as luzes e as sombras da paisagem, o clima de selva levava Cloé para além de si mesma e mostrava lhe que aquele homem se despojava de alguma coisa e, por um momento, entrava em um mundo imaginário, o mundo que tentava escrever, embaralhando se no assunto de índios suicidas, e fazendo se mais e mais querido.

O dia seguiu entre muita cerveja e conjecturas sobre a possibilidade de filmarem o suicídio até que se fez a noite, e um raríssimo luar melado de luz inundou o hotel se sobrepondo ao sol que queimara fogo o dia todo. A cor do céu estava negra como o pêlo de uma pantera e continha um turbilhão imóvel de estrelas. Cloé havia bebido além do costume e ficou muito falante, acreditando que fazia coisas importantes e que iria escrever algo além do texto para a reportagem, algo mais profundo, algo capaz de desvendar o que ela própria censurava.

Na hora de ir para o quarto, sem dizer uma palavra, o missionário acompanhou a. Sob o luar, com o corpo levitante, ela caminhava ao seu lado sem fitá lo. Sua simples presença era um convite. Era quase impossível suportar o seu olhar, a certeza de que ele via-lhe na cara o deslumbramento da confirmação. Porque nos tantos homens que desejara, muito havia sido refreado por um presente de cidade e moderação. Mas a selva, o calor e a umidade introduziam lhe uma realidade desconhecida. Uma realidade em que o instinto era soberano.

Enquanto casada, Cloé jamais conseguiu um relacionamento razoável. Ao se separar, levou algum tempo até se adaptar ao mundo sem a insistência de um marido a exigir lhe dedicação. Perpassou pela cama de uns poucos homens interessantes, mas nenhum deles era o homem do sonho. E, naquele clima de resfolego de rio e selva, com a mão daquele estranho missionário segurando lhe o pescoço, Cloé sentiu os ossos virando espuma. Finalmente entraram no quarto, olharam se e aproximaram se. Foi um beijo voluptuoso, denso, com muito mais força que carinho. As mãos procuraram pelo fecho do sutiã e ela ajudou o a abri lo. Ele buscou umidades e os dois estremeceram. Ela sentiu se dividida em milhões de partículas elétricas. Estava sendo varrida e invadida como só a água barrenta do rio pode varrer e invadir. Com um desconhecido carinho, ele deitou a e penetrou a com um membro excitado, forte e quente, invadindo a, inundando a de gosma, mergulhando a e molhando a até que afundaram num rio de gozo que lhes pareceu de outro mundo.

Reacomodando se nos travesseiros, com um suspiro de animal satisfeito, as mãos de Cloé tatearam a mesa de cabeceira e acenderam o abajur. O ar ficou dourado e ela olhou o missionário. A umidade do rio estava no prazer que se sobrepujava ao seu olhar gelado. Adormeceram entre as últimas carícias murmuradas. Ao afundar na modorra, Cloé sentiu a língua áspera da pantera lambendo seu corpo. O quente bafejar com o terno focinho peludo, a grande língua de enormes papilas lambendo lhe os pés, as pernas, o ventre, os seios, a fenda entre as coxas levaram na a estertores de gozo. Entre sono e vigília já não sabia ao certo quando o prazer com o missionário terminara e surgiu o devaneio com a pantera.

Antes que regurgitasse de prazer, soou a campainha do telefone. Ela tateou ao redor. Quem haveria de ser naquela hora! O som era insistente. Cloé despertou e colocou o fone no ouvido. Era a telefonista do hotel a acordá la no horário solicitado. Droga!, pensou. Mais uma vez a campainha interrompia o sonho. Era preciso sair do aconchego das imagens, levantar se. Por um momento buscou o homem pelo quarto. Embora seus olhos estivessem tão nítidos no sonho, ele já não estava ao seu lado. Silenciosamente, deixara o quarto em algum momento da noite.

Atordoada com tudo aquilo, Cloé não saiu do quarto para o café da manhã. Sentou se frente à telinha do computador. Escreveu que os índios se suicidavam jovens enquanto a vida era impulsionada pelo desejo. Viver uma paixão com intensidade era como o ato de escrever, despedaçava e recompunha de outra forma. Fazia com que não se soubesse como existir no mundo de antes. Talvez não fosse só isso. Havia jovens que pegavam o carro e pisavam no acelerador para sentir uns momentos eletrizantes. Os terroristas suicidas criavam seu próprio holocausto e eram engolidos por ele. Como os Zuruarás, também eles matavam se na esperança de um melhor viver! A possibilidade de ser o causador da própria morte talvez lhes trouxesse uma sensação mais intensa do que o orgasmo.

Contente com aquelas idéias que, ela acreditava, despertariam o interesse da audiência, Cloé foi para a piscina. As águas do rio ainda não haviam baixado o suficiente e a equipe bebia cerveja elocubrando sobre o nada. Ao avistar o missionário, um desejo quase irrefreável invadiu lhe o corpo. Ela disfarçou bebendo cerveja e misturando se à idéia da pouca dramaticidade que os Zuruarás punham no suicídio. Para uma boa reportagem, melhor seria que se atirassem de penhascos ou ateassem fogo ao corpo. Ou que tivessem um motivo maior para a grandeza do gesto de acabar com a vida!

No final da tarde ela foi até o saguão do hotel. Era a hora em que o calor amainava e um ônibus saía num "tour" pelos locais que valiam a pena ser vistos. Cloé embarcou. Depois de uns tantos pontos turísticos, chegaram ao zoológico formado de animais apreendidos pelo exército em suas explorações pela mata. Num local escurecido pelas frondosas árvores, reconheceu por entre o gradeado uma forma animal mais escura. Fitando a por entre as grades, dois olhos verdes resplandeciam. Cloé estremeceu ao reconhecer o leopardo do sonho. Passada a excitação de olhá la pela primeira vez, a fera se impôs como uma estátua negra, com os olhos verdes fulgurantes pregados nela.

Ao redor, as pessoas perpassavam por uns tantos animais enjaulados. Ela permaneceu deixando se hipnotizar pelos olhos verdes do leopardo negro. Retornou ao hotel com aquela imagem na mente. A visão aumentava seu desejo pelo homem de olhar gelado. E ele estava à sua espera com um programa de jantar a dois num dos restaurantes do hotel e depois dançar na boate. Foi o começo de mais uma noite do fausto do gozo.

O missionário já não lhe parecia um homem vindo de outro planeta, mas saído do seu sonho. E, embora tivessem se amado ao delírio, ela despertou no meio da noite com um resíduo de tristeza na alma. Ele não estava ao seu lado. Ela levantou se corajosa, ligou o computador e escreveu sobre si. Sobre a loucura de entregar se a um homem que a fazia vivenciar uma desconhecida paixão, mas que quando despertava não estava ao seu lado. Com a dor de amassar raízes para extrair lhes o próprio veneno, escreveu até acreditar ter chegado ao âmago. Mas, ao reler o que escrevera, sentiu que era preciso mergulhar mais fundo. Saiu do quarto. Esgueirando se pelos corredores vazios, chegou ao mini zoológico. A lua derramava seu clarão melado sobre tudo. O cheiro, a respiração das feras adormecidas, o resfolego do rio a comoviam. Os olhos da coruja eram amarelos, únicos vivos na escuridão da noite. Embora seus pés quisessem levá la para outro local, não teve coragem de ir mais longe.

Voltou ao quarto e, como não conseguisse mergulhar mais fundo na própria alma, imaginou a viagem de canoa pelos pequenos rios afundados na selva, e se pôs a escrever sobre a tradição dos índios se suicidarem. O jovem era um ser ébrio de vida que jamais previa a morte. Mesmo se lançando em campos de batalha, corridas de automóvel ou acrobacias aéreas, negava a morte em cada uma de suas atitudes e esperanças. Se morria era sem saber, como se recebesse um choque ou um espasmo. Os velhos viviam pensando na morte, preocupados com o câncer, o tumor cerebral ou o ataque cardíaco, controlando o funcionamento de cada órgão, como se fossem necessários tantos preparativos para encorajar o corpo gasto e arruinado a enfrentar o inevitável.

Quando bem jovem, também ela sentira uma vontade tão grande de vida que, na impossibilidade de realizações, engendrava a morte. Os Zuruarás não se lançavam ao suicídio ébrios de vida. Acreditavam que o melhor estava por vir, no avesso da existência. Lentamente fabricavam o próprio veneno. Sabiam que se não o bebessem, seu corpo vagaria sem razão pelo mundo e sua alma seria amaldiçoada.

Cloé adormeceu pensando nas razões dos Zuruarás. Na manhã seguinte, a campainha do telefone pegou a acordada. Sem sair da penumbra do quarto, ligou o computador. Começou a dedilhá lo. Já não lhe bastava fazer um bom texto para a reportagem. Por todo o dia, escreveu o que a alma lhe impôs. Ao reler, percebeu que rescrevia a vida como se pudesse vivê la sem ser prisioneira de si mesma, entregando se à leveza de existir. Pela primeira vez compreendeu que a linguagem não servia apenas para nomear as coisas, mas para evidenciar a loucura da alma. Sempre buscara um homem que lhe desse a mão sem reservas e encontrava o completo no ato de escrever.

De palavras muito simples, surgia um homem sem rosto que aparecia lentamente quando as cores da tarde se misturavam e passava as mãos pelo seu corpo, eriçando as pontas dos seios, a penugem do ventre. Sua língua lambia lhe os pés, as pernas, o ventre, os seios, a fenda entre as coxas. Sua pele era um veludo delicioso de se afagar. As mãos passeavam por suas coxas, seu umbigo. Sua respiração era ansiosa. O hálito quente queimava lhe os seios. Ele não só lhe oferecia a mão, como permitia que ela se visse muito linda em seus olhos gelados, mergulhando de corpo e alma em sua loucura.

Ao reler o que escrevera, percebeu que além de pôr a loucura à mostra, escrever causava lhe mais prazer do que se masturbar no sonho. Mais prazer do que fazer amor com o missionário. Era um prazer que não embutia tristeza. Escrever era uma paixão que a deixava ébria de vida, exatamente no ponto em que a morte não seria mais do que uma das convulsões do orgasmo. Com um profundo suspiro, percebeu que, depois de um amor tão completo, já não saberia como voltar a viver no mundo de antes. Se o fizesse, seria como os velhos Zuruarás que erravam pelo mundo com almas amaldiçoadas! Estava condenada a continuar escrevendo.

Cloé abriu a janela. Um raríssimo luar de intensa luz prateava a mata. A cor do céu estava negra como o pêlo da pantera. Ela pôs a atenção em cada ruído misterioso daquele mundo impenetrável. Saiu do quarto. Esgueirou se até o pequeno zoológico do hotel. Ele não era suficiente para aquela noite. Convencida de que, se havia tido a coragem de escrever, poderia ter também a coragem de viver, deixou que seus pés a levassem para onde bem entendessem.

Seguiu numa caminhada onde projetava a imagem de sua mente nas sombras da floresta. Sentia na respiração das árvores a essência da vida. Ocorreu lhe que, quando jovem, sonhara com um homem capaz de ouvir lhe a reinvenção completa da própria vida. Agora que conseguira escrever, já não tinha coisa alguma a dizer a um homem, queria perder se nele, no seu corpo, deixar de ser ela, ser transportada ao céu num orgasmo maior do que o mundo.

Após uma longa caminhada, onde só contava com o clarão da lua e o instinto de seus pés, viu se no local escuro, ligeiramente penetrado pelo luar. Reconheceu por entre o gradeado, uma forma animal mais escura do que a noite. Dois olhos verdes brilhavam, olhando a por entre as grades. O leopardo mantinha a posição de estátua negra, os olhos faiscando alguma coisa gelada. Quando o animal imponentemente se movimentou, ela viu a silhueta do seu corpo erguida, apoiando as patas dianteiras no gradeado, emitindo um som diretamente para ela, convidando-a para o seu mundo.

Ela procurou uma fenda por onde pudesse chegar mais próxima ao animal. O cadeado não estava totalmente fechado. Ela soltou o com facilidade e o leopardo puxou a corrente de ferro com dentes pontiagudos. A passos muito lentos, Cloé entrou na jaula e estancou diante de dois olhos verdes fulgurantes, parados na noite. Um desejo de vida a impulsionava por aquele caminho. Não havia o que fazer senão seguir. O cheiro morno e acre da jaula a excitava. O pêlo preto do leopardo seria invisível na noite não fosse o reflexo da lua. Seus olhos verdes fulgurantes fitavam na sem compreender, mas vendo além de toda a compreensão.

Por um instante, como nas primeiras vezes em que tentara escrever, o medo tomou conta do seu ser e Cloé quis dar um passo atrás. Nesse preciso momento, o brilho fulgurante dos olhos verdes se extinguiu. De olhos fechados a fera se aproximou lentamente. Ela sentiu lhe o quente bafejar com o terno focinho peludo, a grande língua de enormes papilas lambendo lhe os pés, as pernas, o ventre, os seios, a fenda entre as coxas. Seu medo se esvaiu no desejo. A língua, áspera e úmida, roçava o seu ventre. A fera bafejou. Estava sedenta, inquieta. A respiração descompassada. O veludo de seu pêlo passeava por suas coxas, seu umbigo. O hálito quente queimava lhe os seios.

Quando novamente viu lhe os olhos, Cloé deixou se envolver em seu fascínio. Sem medo, delirava de prazer nos movimentos daquela língua cheia de volúpia. Corajosa, foi se entregando com determinação. Por um momento, o leopardo se afastou. Com seus olhos verdíssimos, ele observou a como se através dos olhos pudesse sentir toda a sua súplica e soubesse satisfazê la, adentrando lhe a loucura. Ele deu um salto e ela ainda pôde sentir a grandiosidade da vida quando dentes carnívoros e mornos fincaram se em seu pescoço.

Pseudônimo: Katherine Mansfield

Sobre o Autor

Vera Carvalho Assumpção: A autora, premiada, entre outros, no Concurso de Contos Guimarães Rosa, promovido pela Rádio France Internacional, em Paris, foi diretora da UBE (União Brasileira de Escritores) e do PEN CLUB São Paulo . Uma das primeiras escritoras a publicar em formato digital (eBook),

Últimos livros publicados: Paisagens Noturnas (Editora Landscape) e Viagem Virtual (Larousse)

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