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Pró-Vida, Pró-Morte

por André Carlos Salzano Masini *
publicado em 20/10/2004.

No último domingo faleceu o ator estadunidense Christopher Reeve (o Super-Homem), que vivia como tetraplégico desde 1995, quando sofreu um acidente eqüestre.

O falecimento teve um aspecto trágico. Após 9 anos de luta inglória -- nos quais Reeve enfrentou sua condição sem perder o ânimo e deu exemplo de coragem e esperança a milhões de pessoas -- o falecimento teve um aspecto trágico pelo fato de ter sido uma lei que roubou desse ser humano qualquer chance de ser curado pela ciência.

Em agosto de 2001 o presidente George Bush, em nome da religião, aboliu as pesquisas com células-tronco embrionárias (fez isso cortando os fundos federais para pesquisas com novas linhagens de células-tronco, limitando-os a cerca de 60 culturas já existentes). Bush e seus asseclas (em nome do que chamam de "cristianismo") dão a tal política o belo nome de "pró-vida" (pro-life). Slogan que soa bem, mas que na prática é algo calamitoso.

Células-tronco embrionárias são as células formadas logo após a união de um óvulo com um espermatozóide. São células indiferenciadas que ainda não geraram qualquer tecido, muito menos qualquer órgão, muito menos ainda qualquer traço de um ser humano. São células indiferenciadas que se fossem devidamente alojadas em um útero e se as condições fossem absolutamente propícias e tudo desse certo poderiam, talvez, um dia, virem a formar um ser humano. (Cada um dos espermatozóides que morrem aos milhões em cada gota de líquido fecundante masculino, também é uma célula que "poderia um dia vir a formar um ser humano"). As células-tronco embrionárias, enfim, são apenas células. E células que têm capacidade de curar ou abrandar um número incontável de doenças.

De forma abstrata, o slogan "pró-vida" parece algo muito bonito. Dá a idéia de que se está protegendo alguém ou algum "ser humano" frágil e indefeso. Mas na verdade "pró-vida" não defende nada de concreto ou palpável, defende apenas o preconceito, a intolerância e o fundamentalismo religioso de certos grupos que se dizem cristãos. O resultado prático de "pró-vida" é condenar à morte, ao sofrimento e à desesperança milhões de seres humanos reais, homens, mulheres, crianças, velhos que respiram neste mundo, e que a cada dia imaginam como seria bom poder andar de novo, poder parar de tremer, parar de fazer hemodiálise, enfim... ter saúde novamente. A todos que conviveram ou convivem com pessoas que padecem nessas situações, o termo "pró-vida" tem um gosto amargo de opressão, morte e hipocrisia. No mundo real, "pró-vida" traduz-se efetivamente em "pró-morte".

Não se trata de defender incondicionalmente a ciência. Muitas vezes, nesta mesma coluna, procurei mostrar o quanto a ciência é limitada tanto em escopo quanto em eficiência. Mostrei que a ciência é apenas uma de tantas formas parciais de se tentar compreender o Mundo; que ela está longe de ser inquestionável, infalível, ainda mais longe de ser absoluta; e que continua a precisar da filosofia para poder se situar no Universo.

Também não se trata de diminuir o valor do sentimento religioso, pelo qual sempre tive profundo respeito. Há pessoas que não aceitam a atitude de certos cristãos, que morrem por se recusarem a receber transfusões de sangue; eu sempre respeitei tal opção religiosa. Alguns cientificistas chegam a propor que o Estado deveria "ministrar à força" tais tratamentos; eu sempre repeli tal idéia, pois considero que as pessoas têm o direito às suas convicções religiosas, inclusive ao recusar tratamento preceituado pela ciência.

Porém se essas mesmas pessoas, com seus mesmos preceitos religiosos, tentassem impor suas "verdades" a todos, e tentassem criar leis para "proibir" e banir definitivamente a transfusão de sangue para todos, então, o que era uma convicção religiosa digna de respeito passaria a ser um fanatismo autoritário abominável.

Pois esse fanatismo abominável é o que existe hoje nos Estados Unidos, escondido sob o belo nome de "pró-vida". "Pró-vida" significa criar leis que impõe os preceitos (e preconceitos) religiosos de certos grupos a toda a sociedade. Preceitos que significam morte e sofrimento para muitas pessoas.

Imagino o que pensaria disso aquele sábio, que 2 mil anos atrás andou por este mundo, pregando tolerância, solidariedade e flexibilidade, e denunciando a hipocrisia. Obviamente não foi Dele que esse fundamentalismo fanático (autoproclamado cristão) do qual Bush faz parte tirou sua rigidez, arrogância e suas pretensões teocráticas. Christopher Reeve que o diga.

Sobre o Autor

André Carlos Salzano Masini: André C S Masini nasceu em São Paulo, em 1960. Aos 17 anos escreveu sua primeira história de ficção científica, "Os montes além do deserto", que existe até hoje em manuscrito. Cursou Geologia na USP, e formou-se em 1983.

Hoje tem dois livros publicados: a ficção científica "Humanos" e o livro de traduções e estudos “Pequena Coletânea de Poesias de Língua Inglesa”, além disso tem uma coluna semanal no Jornal "O Paraná", e é diretor de um centro cultural virtual, a www.casadacultura.org, que divulga seus trabalhos e tem milhares de assinantes em todo o Brasil.

contato: andre@casadacultura.org

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