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De Uma Certa Noite surda
por Chico Lopes
*
publicado em 08/02/2004.
Roupas que me atrapalham, que, por mais limpas, parecem precisar de lavagens sem conta, o pó, o infatigável pó de agosto, o corpo como um grande estorvo exigente, a inexplicável melancolia dos grandes hotéis silenciosos, o medo de algumas caras abruptas, hostis, nas esquinas, e a pressa de chegar ao terminal de circulares, deixar o centro.
É muito tarde. Já vivi um tempo em que o avanço da noite era uma promessa. Hoje, à medida em que as horas se estendem, só se adensam as ameaças, sombras irrompem de cantos familiares, há risadas que não são exatamente de alegria, gestos que precisam ser avaliados de esguelha, e às vezes é necessário fugir sem pensar muito: o relógio clama que o ônibus poderá ser perdido.
O vento. Silêncio, os carros já são poucos, e talvez o meu desejo de tudo ouvir e tudo tentar decifrar por precaução, tenha feito com que eu captasse isso: uma vozinha, um fio de choro em algum canto do escuro. Um som tão indistinto que poderia ser o pio de um passarinho desalojado das grandes árvores.
Mas, não: há alguém, que só percebo vagamente, porque não quero olhar muito, sob uma marquise, espremido contra um canto de uma porta fechada, e, sob o vento frio, a cabeça enfiada nos braços cruzados sob as pernas, precariamente vestido.
Percebo melhor, mesmo sem parar: é uma menina, terá seus oito ou nove anos. Ouço de novo o som, o chorinho que nem é um pedido, mas um lamento que se cumpre, automático, na sua inutilidade de lamentar. Mais alguns passos adiante, decido que é preciso voltar. Quando volto – e talvez tomar essa decisão tenha levado tempo demais – já não há ninguém sob a marquise. O vento e a noite engoliram o vulto visto e ouvido – ou apenas imaginado? Fosse o que fosse, sou perseguido pelo som e pela imagem do apelo que nem apelo era: àquela hora, quem é que espera ser ouvido?- a criaturinha só devia estar temendo as grandes assombrações soltas na cidade vazia e, com certeza, escondera-se de mim rapidamente: eu era mais uma ameaça.
Pressa, medo. No caminho da pressa e do medo, tudo ignoramos ou tudo interpretamos como um desarranjo ameaçador na ordem das coisas. O outro está lá, em seu breu inescrutável, e temos que nos defender dele, de qualquer modo. Mas, tanta é a defesa que a vida acaba por nos escapar também. Certo, não queremos ser tocados, e perfeito: não seremos tocados, nem pelo Mal nem pela Salvação.
Ignorar é imperioso. Erguem-se muros, trancam-se janelas, são impenetráveis os jardins da omissão: as festas privadas, com sólidos vigilantes aos portões, prosseguem. No entanto, a noite não quer acabar. E o pó do deserto é invencível. E ninguém dorme, a não ser com sedativos, um sono imerecido, com sobressaltos.
O mundo, o que é? Uma ordem inumana de só se pode esperar algum gesto de intimidação, alguma negativa que gele. A noite é enorme, a cidade é feita de coisas e, se gente há, é melhor temê-la. Ouve-se o pedido, passa-se além. Ouve-se o gotejo, mas é um pingo de água, um único, para ser ouvido uma única vez, contra as paredes de um poço onde o que despenca, despenca sem testemunho e sem retorno possível.
Alcanço o meu ônibus, que já sai. Tenho um livro para ler. O passageiro que vai à minha frente abre a janelinha, deixa entrar o vento. Puxa assunto: «Tempo esquisito. O senhor acha que pode mudar? Será que vai chover?».
Não respondo, faço apenas um pequeno gesto de dúvida. Não digo que espero chuva. Que há muito tempo espero chuva. Que seria tão bom se chovesse, chovesse desmedidamente!
Ele não me escutaria.
Sobre o Autor
Chico Lopes: Chico Lopes é autor de dois livros de contos, "Nó de sombras" (2000) e "Dobras da noite" (2004) publicados pelo IMS/SP. Participou de antologias como "Cenas da favela" (Geração Editorial/Ediouro, 2007) e teve contos publicados em revistas como a "Cult" e "Pesquisa". Também é tradutor de sucessos como "Maligna" (Gregory Maguire) e "Morto até o anoitecer" (Charlaine Harris) e possui vários livros inéditos de contos, novelas, poesia e ensaios.Mais Chico Lopes, clique aqui
Francisco Carlos Lopes
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