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Anjos que ultrapassam abismos

por Maria Cristina Castilho de Andrade *
publicado em 26/09/2004.

Há pessoas que carregam abismos. Algumas vezes, inocentemente. Vêm de gerações criadas na ilusão de que não somos todos iguais ou escolhem as distâncias, na construção dos dias, com concreto apenas, desprovidas de janelas que dão para a brisa, onde Deus passa.
A palavra abismo significa profundidade a que se não acha o fundo. E, por onde não há fundo, todas as coisas escorrem. Há, ainda, o risco de se despenhar, de se despedaçar. Outras pessoas, lamento que sejam raras, levam travessias como bagagem.

Madrugada. As poucas pessoas, que permaneceram, observavam a pequenina em sua serenidade de sono, excluídos pesadelos. Um ano e alguns dias somente. Não interromperia os dias a pedir leite. A boneca, de cabelos longos, seu encanto, se tornaria muda. Nas lembranças, a tentativa de caminhar sem passos trôpegos, o sorriso, os braços macios em volta do pescoço, meigos balbucios, primeiras palavras. Morrera a menina.

O limitado espaço, em que era velada, trazia a realidade de sua família. A bisavó, cega há décadas, que partilha o salário mínimo com a filha e os netos, chamando por Deus com o propósito de que a fizesse aceitar o acontecimento, como tantos outros. A avó, recentemente livre das esquinas repletas de mariposa, em prantos, à procura de baús no coração a fim de guardar sua nova dor. Inútil. Todos eles plenos de decepções, de correntes com fantasmas e de sonhos estrangulados. Prometia, a si mesma, não voltar ao uso da pedra e do pó na dor da emoção.

O pai, que saíra definitivamente da penitenciária, há dez dias, empenhado em mudar, trocava, naquela hora, a esperança trêmula de um novo tempo pela tentativa inútil de que a filha levasse, na boca, a chupeta que a acalmava nos sustos. Ansiava por adivinhar o que seria necessário na viagem em que não poderiam acompanhá-la. A mãe, que passara, por algum tempo, e em outros voltava, nas esquinas das mariposas, empenhada na compra de medicamentos ou agasalho para a pequenina, enquanto o companheiro permanecia encarcerado, repetia sobre o impacto de sentir nos braços, que carregaram a filha e a conduziram ao peito com leite-vida, a rigidez de seu corpo, após o último suspiro. O colo das cantigas de ninar transformado em cortejo com hino fúnebre.

Um vaso enorme de flores brancas interrompeu a madrugada. O funcionário do velório depositou-o aos pés do caixão. A família estranhou. Uma mulher bonita, trajada de azul, com vestes finas, olhos em sintonia com o coração, emocionara-se com a cena: a "gruta" habitada pela pobreza e a desolação. A "gruta" sem vida. Motivo das flores exuberantes e simples. Sinal no deserto. A mãe e a avó entenderam de imediato: a mulher das flores brancas vestia-se de travessia. Nela não havia abismo algum. Permitia-se ser anjo. Fez-se consolo no compasso da aflição.

Acompanhamos o amanhecer daquele dia, a partir das flores brancas, antes que o corpo da menina recebesse as homenagens da despedida, rezando o Mistério Glorioso da Ressurreição.

Sobre o Autor

Maria Cristina Castilho de Andrade: Cristina Castilho é professora de Português e agente das Pastorais da Mulher e a Carcerária. No trabalho com mulheres prostituídas e presidiários, circulou e circula pelo submundo, conhecendo sua realidade. Seu livro de crônicas conta a história das pessoas com quem se deparou no submundo do mundo. Escreve semanalmente no Jornal da Cidade de Jundiaí; mensalmente no Suplemento Estilo do Jornal de Jundiaí - Regional e, quinzenalmente, no Jornal de Abrantes - Portugal.

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