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De Frente ao Espelho

por Rubens Shirassu Júnior *
publicado em 16/08/2004.

Há muitas canções das quais algumas citações eu não me esqueço nunca. Não é difícil para mim, portanto, começar qualquer crônica, citando uma letra do grupo Ira! Falo agora de uma composição – das centenas que guardo – que me parece perfeita na explicação de determinada atitude interior, equacionada com síntese e clareza. É assim: “Ontem eu era o filho/ Hoje, sou o pai”. O que eu não estou muito certo – em relação ao pensamento aí exposto – é se o compositor fez a letra por simples engenho e habilidade ou se já constatou, dentro dele mesmo, a efetivação do sentimento proposto: descobrir-se de repente, com a exata idade que se tem. Não acredito. A gente nunca tem na hora que ela chega, a idade das pessoas que conhecemos mais velhas do que nós. Eu me lembro dos homens de quarenta anos, quando eu tinha vinte. Eu não pareço nada com eles.

* * *
Outro dia, porém, cheguei diante do espelho do banheiro e olhei agudamente a minha cara. E fiquei por algum tempo mirando aquele desconhecido na minha frente, um vinco vertical entre as duas sobrancelhas, o nariz arredondado como batatinha, uns olhos lá no fundo me olhando espantados e ameaçadores, os cantos da boca marcados para baixo, o rosto largo e comprido, com uma papa no queixo, caído no fundo do espelho, pensando na canção sem ritmo e sem rima: “ontem eu era ainda o filho/ e hoje eu sou o pai”.

Olhei-me e constatei: eu acabara de ficar pronto. Aquele que estava na minha frente era, fisicamente, o homem que eu estava destinado a ser: Moreno quase café com leite. Cabelos castanhos escuros com alguns frisos grisalhos, nariz arredondado, um cavanhaque e dedos longos tateando a face. A constatação, porém, era, naquele momento, muito mais ampla. Agora, diante deste espelho, um homem da minha idade, assumido de repente, de modo assustador e premente: vai! Este é você. Um homem de quarenta e dois anos. Um adulto. Olha fundo o seu rosto, rapaz. Ou melhor, olha fundo o seu rosto, meu senhor, e constate a verdade: você é um homem de sua idade.

* * *

E o que é que me impulsiona, neste momento, a saber disso com absoluta certeza? Meus olhos estão vermelhos e visivelmente assustados. Eu estou com uma pena imensa do homem refletido na minha frente. Nesse exato instante, no banheiro de minha casa, eu só não estou desesperado por uma razão muito simples: os caminhos do desespero não são por aí. Eu estou assustado apenas pela descoberta. Nesta manhã, eu caminhei todos os anos que faltavam para que eu realizasse a letra da música do Ira! Estou convencido de que sou um dos poucos que, de repente, entre bilhões de seres humanos, chegou e realmente constatou que estava, no tempo, realmente onde tinha chegado. E este momento me envolveu como uma película – como o tempo nos parques, tão bem-dito pelo Vinícius -, eu senti o instante como uma coisa absolutamente física e palpável. E era este o único – e egoístico – sentimento que eu experimentava naquela hora.

Sobre o Autor

Rubens Shirassu Júnior: Designer artístico, jornalista e autor entre outros de Religar às Origens (Ensaios, 2003) e Oriente-se: Manual de Procedimentos no Japão, 1999.
É o autor da coluna OLHO MÁGICO na VERDES TRIGOS.

Contato: jrrs@estadao.com.br

Veja também o "ORIENTE-SE: Manual de Procedimentos no Japão"
Edição Independente de Rubens Shirassu Júnior
Site do Livro: http://www.stetnet.com.br/orientese/

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