Crônicas,contos e outros textos

PÁGINA PRINCIPAL LISTA DE TEXTOS Airo Zamoner


COMPARTILHAR FAVORITOS ver profile do autor fazer comentário Recomende para um amigo Assinar RSS salvar item em delicious relacionar no technorati participe de nossa comunidade no orkut galeria relacionar link VerdesTrigos no YouTube fazer uma busca no VerdesTrigos Imprimir

São Miguel das Missões Verdes Trigos em São Miguel das Missões/RS - Uma viagem cultural

VerdesTrigos está hospedado no Rede2

Leia mais

 




 

Link para VerdesTrigos

Se acha este sítio útil, linka-o no seu blog ou site.

Anuncie no VerdesTrigos

Anuncie seu livro, sua editora, sua arte ou seu blog no VerdesTrigos. Saiba como aqui

O amor de Godofredo

por Airo Zamoner *
publicado em 21/07/2004.

Caminhou rápido. Destino certo, Godofredo não tinha. Soltava palavras solitárias, sem interlocutor visível.

Crianças riam, disfarçando a boca. Jovens não seguravam o gesto clássico da loucura. Impassível, caminhou célere, discutindo temas obscuros. Gestos desinibidos se soltaram.

Brusca meia volta e retornou, caminhando ao longo da rua obstruída de pedestres equilibrados pelo imenso calçadão congestionado.

Cabelos embranquecidos, desalinhados. Suor na testa. Peito ofegante. Cabeça baixa, passos ritmados, ligeiros. Discussão interminável com o vazio aparente. Óculos pesados, mal postados, premendo o nariz avermelhado. Lábios secos, exaustos da útil fala inútil. Roupas em desalinho, gritando pressa na missão da descoberta.

Homens e mulheres ocupados debatiam favores, esbarrando cegos na tentativa inconsciente de arrancá-lo do caminho. Vendedores ansiosos gritavam produtos e milagres. Folhetos impostos em sua barriga flutuavam indiferença.

Novo retorno intempestivo e a caminhada, já não tão célere, refazia a mesma trilha invisível.

Agora as idéias caíam escorregadias, desconexas, avulsas, cansadas de se espremerem no pensamento em erupção cartesiana.

O cansaço inclinava o corpo. O peito projetava-se adiante das pernas. Os pés tropeçavam-se. A boca entreaberta, sangrava dúvidas pelo queixo abatido.

Ergueu a cabeça repentinamente. As mãos, enterrou-as nos bolsos vazios. A manta encardida escondeu o pescoço enrugado. Olhou a cidade. Encarou pessoas. Vasculhou fisionomias e expressões antigas, cadastradas nos reflexos de suas conjecturas.

Tirou as mãos dos bolsos e caminhou em ziguezague, abordando o próximo. Buscou a fisionomia familiar nas fichas perdidas de suas memórias confusas. Uma delas era seu foco. Segurou alguém pelo braço. O braço foi arrancado de suas mãos com violência pela irritação da abordagem. Seu corpo girou desgovernado.

Recompôs-se. As mãos apertaram as têmporas. Buscou explicações do engano. A caminhada se tornou instável.

As palavras estavam lá dentro, nítidas, coerentes com suas lembranças, com seu pensamento e se ajeitavam numa corrente absolutamente lógica na garganta, mas lá se embaralhavam, saiam solteiras, absurdas, amalucadas.

Finalmente a moça, veio em sua direção, destacando-se no burburinho. Não era mais um alguém qualquer. Era ela! Teve, finalmente a certeza de que era Francélia. Trôpego, tentou a caminhada reta em sua direção. Abriu os braços. Gesto de abraço. Gosto de abraço pela garganta. Ele entendeu. Ela iría explicar suas lembranças. Deslembranças. Ela sorria. Esperava seu abraço. A caminhada finalmente terminaria neste abraço. Avaliou o tempo gasto na procura! Avaliou o abandono do tempo no vazio de seu mundo de abandonos, na reescrita das faces perdidas!

Precisava livrar-se da ociosidade insistente, da solidão alucinante e caminhar pelas gentes. Gente que poderia ter a fisionomia de Francélia, a moça que estava esperando o seu abraço para reorganizar suas recordações. Seu olhar vermelho refletia Francélia sorrindo. Não! Ela não estava mais sorrindo. Ela estava rindo. Rindo muito! Estava feliz em reencontrá-lo! Tentou liberar as palavras gentis, perfiladas há tanto tempo nas galés obscuras de suas doces lembranças! Gritou. O grito pulou esganiçado, atrapalhado! Pigarreou em nova tentativa. Ele estava próximo. Muito próximo. A moça parou de rir! Largou a bolsa que ricochetou duas vezes no chão, parando de lado e derramando pela boca aberta, objetos sortidos, confidenciais. Godofredo olhou a bolsa e olhou Francélia. A moça levantou os braços! Ele se aproximou correndo, mas seu peito bateu forte nos punhos fechados, na ponta de braços esticados de proteção repentina. Caiu entontecido, confuso e a multidão o cercou em louca gritaria, imobilizando-o numa camisa de força de pernas, braços, palavras, lembranças.

Sobre o Autor

Airo Zamoner: Airo Zamoner nasceu em Joaçaba, Santa Catarina, criou-se no Paraná e vive em Curitiba. É atualmente cronista do jornal O ESTADO DO PARANÁ e outros periódicos nacionais. Suas crônicas são densas de conteúdo sócio-político, de crítica instigante e bem humorada. Divide sua atividade literária entre o romance juvenil, o conto e a crônica, tendo conquistado inúmeros prêmios e honrosas citações.

< ÚLTIMA PUBLICAÇÃO | TODAS | PRÓXIMA>

LEIA MAIS


Religião e Imprensa: de que lado você está?, por José Aloise Bahia.

Para quem (realmente) gosta de Beatles, por Rodrigo Capella.

Últimos post´s no Blog Verdes Trigos


Busca no VerdesTrigos