Crônicas,contos e outros textos
PÁGINA PRINCIPAL → LISTA DE TEXTOS → Airo Zamoner →
Verdes Trigos em São Miguel das Missões/RS - Uma viagem cultural
VerdesTrigos está hospedado no Rede2
Leia mais
-
NOSSOS AUTORES:
- Henrique Chagas
- Ronaldo Cagiano
- Miguel Sanches Neto
- Airo Zamoner
- Gabriel Perissé
- Carol Westphalen
- Chico Lopes
- Leopoldo Viana
- mais >>>>
Link para VerdesTrigos
Se acha este sítio útil, linka-o no seu blog ou site.
Anuncie no VerdesTrigos
Anuncie seu livro, sua editora, sua arte ou seu blog no VerdesTrigos. Saiba como aqui
O amor de Godofredo
por Airo Zamoner
*
publicado em 21/07/2004.
Crianças riam, disfarçando a boca. Jovens não seguravam o gesto clássico da loucura. Impassível, caminhou célere, discutindo temas obscuros. Gestos desinibidos se soltaram.
Brusca meia volta e retornou, caminhando ao longo da rua obstruída de pedestres equilibrados pelo imenso calçadão congestionado.
Cabelos embranquecidos, desalinhados. Suor na testa. Peito ofegante. Cabeça baixa, passos ritmados, ligeiros. Discussão interminável com o vazio aparente. Óculos pesados, mal postados, premendo o nariz avermelhado. Lábios secos, exaustos da útil fala inútil. Roupas em desalinho, gritando pressa na missão da descoberta.
Homens e mulheres ocupados debatiam favores, esbarrando cegos na tentativa inconsciente de arrancá-lo do caminho. Vendedores ansiosos gritavam produtos e milagres. Folhetos impostos em sua barriga flutuavam indiferença.
Novo retorno intempestivo e a caminhada, já não tão célere, refazia a mesma trilha invisível.
Agora as idéias caíam escorregadias, desconexas, avulsas, cansadas de se espremerem no pensamento em erupção cartesiana.
O cansaço inclinava o corpo. O peito projetava-se adiante das pernas. Os pés tropeçavam-se. A boca entreaberta, sangrava dúvidas pelo queixo abatido.
Ergueu a cabeça repentinamente. As mãos, enterrou-as nos bolsos vazios. A manta encardida escondeu o pescoço enrugado. Olhou a cidade. Encarou pessoas. Vasculhou fisionomias e expressões antigas, cadastradas nos reflexos de suas conjecturas.
Tirou as mãos dos bolsos e caminhou em ziguezague, abordando o próximo. Buscou a fisionomia familiar nas fichas perdidas de suas memórias confusas. Uma delas era seu foco. Segurou alguém pelo braço. O braço foi arrancado de suas mãos com violência pela irritação da abordagem. Seu corpo girou desgovernado.
Recompôs-se. As mãos apertaram as têmporas. Buscou explicações do engano. A caminhada se tornou instável.
As palavras estavam lá dentro, nítidas, coerentes com suas lembranças, com seu pensamento e se ajeitavam numa corrente absolutamente lógica na garganta, mas lá se embaralhavam, saiam solteiras, absurdas, amalucadas.
Finalmente a moça, veio em sua direção, destacando-se no burburinho. Não era mais um alguém qualquer. Era ela! Teve, finalmente a certeza de que era Francélia. Trôpego, tentou a caminhada reta em sua direção. Abriu os braços. Gesto de abraço. Gosto de abraço pela garganta. Ele entendeu. Ela iría explicar suas lembranças. Deslembranças. Ela sorria. Esperava seu abraço. A caminhada finalmente terminaria neste abraço. Avaliou o tempo gasto na procura! Avaliou o abandono do tempo no vazio de seu mundo de abandonos, na reescrita das faces perdidas!
Precisava livrar-se da ociosidade insistente, da solidão alucinante e caminhar pelas gentes. Gente que poderia ter a fisionomia de Francélia, a moça que estava esperando o seu abraço para reorganizar suas recordações. Seu olhar vermelho refletia Francélia sorrindo. Não! Ela não estava mais sorrindo. Ela estava rindo. Rindo muito! Estava feliz em reencontrá-lo! Tentou liberar as palavras gentis, perfiladas há tanto tempo nas galés obscuras de suas doces lembranças! Gritou. O grito pulou esganiçado, atrapalhado! Pigarreou em nova tentativa. Ele estava próximo. Muito próximo. A moça parou de rir! Largou a bolsa que ricochetou duas vezes no chão, parando de lado e derramando pela boca aberta, objetos sortidos, confidenciais. Godofredo olhou a bolsa e olhou Francélia. A moça levantou os braços! Ele se aproximou correndo, mas seu peito bateu forte nos punhos fechados, na ponta de braços esticados de proteção repentina. Caiu entontecido, confuso e a multidão o cercou em louca gritaria, imobilizando-o numa camisa de força de pernas, braços, palavras, lembranças.
Sobre o Autor
Airo Zamoner: Airo Zamoner nasceu em Joaçaba, Santa Catarina, criou-se no Paraná e vive em Curitiba. É atualmente cronista do jornal O ESTADO DO PARANÁ e outros periódicos nacionais. Suas crônicas são densas de conteúdo sócio-político, de crítica instigante e bem humorada. Divide sua atividade literária entre o romance juvenil, o conto e a crônica, tendo conquistado inúmeros prêmios e honrosas citações.< ÚLTIMA PUBLICAÇÃO | TODAS | PRÓXIMA>
LEIA MAIS
Religião e Imprensa: de que lado você está?, por José Aloise Bahia.
Para quem (realmente) gosta de Beatles, por Rodrigo Capella.