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Nasci com dois anos
por Airo Zamoner
*
publicado em 16/06/2004.
Foi de repente. Estava indo para a escola. Claro que era a escola dela e não a minha. Não sei porque ia junto e ficava num berço, no sótão da escola. Lá, um alarido de senhoras e moças, atravessava a manhã. Faziam trabalhos manuais, costuras, bordados e sei lá mais o quê. Demorava para que me deixassem sossegar. Antes, todas tinham que me pegar no colo, encher a minha bochecha de beijos. Depois me largavam no berço e viravam as costas. Daí era muito bom!
Tinha uma montanha de brinquedos que quase não cabia no berço. Revirava todos eles e parece que sempre tinha algum diferente que eu nunca tinha visto. Pegava e examinava todos os ângulos. Jogava lá no outro lado e me atirava atrás, pegando-o novamente. Mas, quando eu começava a gostar do brinquedo que arranjava, vinha uma daquelas mulheres e acabava com minha diversão.
Era uma senhora gorda. Quando falava comigo, sorria bastante. Acho que ela gostava muito de mim. Era sempre ela que pegava minha lancheira, tirava a mamadeira... É! Eu tomava mamadeira na escola de minha irmã que foi a minha primeira escola.
Não lembro de nada ligado a estudo. Por que será que eu nasci caminhando pelas ruas da minha cidade? Assim de repente e já com dois anos? Que jeito estranho de nascer! É, mas foi assim mesmo. Lembro muito bem! Lembro também de outras coisas.
Estou voltando para casa. Minha irmã e eu estamos passando bem na frente da cantina do meu avô. Os italianos como ele costumavam dar esse nome para a fábrica de vinho e engarrafamento de refrigerantes. Lá trabalhava também meu tio. Ele lavava garrafas o tempo todo e tinha as mãos muito vermelhas.
Minha irmã pára e me pára também. Meu avô, que a gente chamava de nono, faz um monte de perguntas e depois nos dá umas balas muito doces e gostosas. Claro que me pega no colo, me larga e me pega de novo, sempre falando coisas e mais coisas que eu não entendo. Acho que ele gosta de mim. Depois ele me larga de uma vez... Eu retomo a caminhada. Ou melhor, minha irmã é que retoma e me leva junto pela mão.
Puxa, que caminhada comprida essa de ir para casa. Veja só! Estou caminhando ainda. Parece que nunca vou chegar. Demorou tanto que fui crescendo incrivelmente durante o caminho. Olho minha irmã e ela nem quer mais pegar em minha mão. Diz que já sou bem grandinho e posso muito bem andar sozinho. Ela está tão grande! O caminho está tão comprido. Espere aí! Ela nem está mais aqui a meu lado. Estou é andando sozinho. Sozinho, não! Tem muita gente andando comigo. Nossa! Quanta gente! Será que não vou chegar em casa? Já estou com fome.
Eu passo com minha irmã em frente às vitrines. Isso é tão legal. Vejo-me e a vejo lá nos reflexos. Não! Agora não vejo mais, não! Puxa, estou mesmo muito grande! Olhe lá meu reflexo na vitrine. Cresci tanto e assim mesmo a casa não chega nunca.
E eu lá na vitrine de novo... Mas, agora estou... Ué! Estou abraçado com minha mulher! Ela é tão bonita! Eu tenho filhos! Três! Lindos! Eles estão ali no reflexo, andando comigo. Estamos todos andando juntos. É! Nem preciso me preocupar com a hora de chegar em casa. Acho que minha casa é aqui mesmo, nesta caminhada. A fome nem me aperta mais o estômago. Mas às vezes fico com vontade de voltar lá naquele sótão, ficar um pouco naquele berço, mesmo que minha bochecha fosse arder de tantos beijos, e depois me atirar no meio daquele monte de brinquedos só pra encontrar um novo, diferente, desconhecido... Mas, logo desisto de tudo porque aqui é que está bom de verdade.
A única coisa que me incomoda é que nasci já com dois anos e não sei o que fiz antes.
Sobre o Autor
Airo Zamoner: Airo Zamoner nasceu em Joaçaba, Santa Catarina, criou-se no Paraná e vive em Curitiba. É atualmente cronista do jornal O ESTADO DO PARANÁ e outros periódicos nacionais. Suas crônicas são densas de conteúdo sócio-político, de crítica instigante e bem humorada. Divide sua atividade literária entre o romance juvenil, o conto e a crônica, tendo conquistado inúmeros prêmios e honrosas citações.< ÚLTIMA PUBLICAÇÃO | TODAS | PRÓXIMA>
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