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O Que Fizemos de Nossas Vidas

por Ivo Korytowski *
publicado em 28/04/2004.

O que fizemos de nossas vidas, perguntava-se meu amigo D., atingido em cheio pela “crise” da meia-idade, aquela fase da vida em que de repente descobrimos que temos um encontro marcado — com nossa própria morte, sabe lá Deus quando.

Na minha vida eu cometera uma loucura: trocara a mulher de quarenta por duas de vinte! Brincadeira, era uma só, mas no tálamo (palavra meio que metida a besta para o leito nupcial) valia por duas. Só que os prazeres talâmicos que eu e as duas Lauras compartilhávamos não vêm ao caso aqui (para decepção do leitor?).

Aos cinqüenta anos a gente começa a recordar as festinhas dos quinze aos dezoito — dos quinze aos dezoito, Paris é uma festa, como dizia o velho Hemingway. Os tempos do Andrews (o colégio lá na praia de Botafogo), as aventuras da adolescência, os conjuntos da época: Beatles, Monkees, Hermann_s Hermits...

Conheci as duas Lauras em um fórum de cultura islâmica na Internet. Eu estava tentando entender melhor o sofrimento que nós, sofridos judeus, acabamos (sem querer?) infligindo ao povo palestino. As duas Lauras procuravam algum muçulmano virtuoso que as reconduzisse à religião dos ancestrais, imigrantes sírios. (No islamismo, o homem pode casar-se com até quatro mulheres, ou seja, Laura ao quadrado.) Acabou conhecendo a mim, um judeu. Desses judeus que só vão à sinagoga quando tem festa de casamento ou bar mitzvah: mas mesmo assim um judeu.

No início, vivíamos num paraíso bíblico: restaurantes, cineminhas, barzinhos. Mas como em todo relacionamento, o somatório de uma besteirinha aqui, outra besteirinha ali — a mania de Laura de espiar meu e-mail, esconder minhas havaianas onde eu jamais as encontraria, essas coisinhas — acabou desencadeando nossa primeira briga de casal. Primeira e última. A expulsão do Paraíso.

Foi na Praia de Copacabana. Fevereiro, pleno verão. Fazia calor, e saímos de casa para pegar uma brisa no calçadão. Mas não resistimos ao apelo do mar e acabamos tirando os sapatos e descendo à areia. Copacabana repleta de turistas. Grupo de japoneses ria gostosamente como que saídos de filme de Kurosawa. Criança afagava a careca do Drummond — aquele Drummond da estátua, sentadinho num banco lá pelo Posto 6. Uma hora dentre as horas, Laura cismou:

— Pensa que não vi você olhar praquela mulher?

— Qual mulher?

— Aquela lá, quase nua, e ainda se faz de distraído. (Realmente, mulher seminua posava para fotógrafo.)

— Amor, você sabe que sou míope, na praia tiro os óculos, não enxergo quase nada.

— Mas aquela piranha você enxergou direitinho.

O fato é que o diabo, cheio de todo o engano e de toda a malícia, inimigo de toda a justiça, resolvera perverter os caminhos retos de mim e Laura. E eis que, naquele momento, vejo-me dominado pela mais pura das raivas:

— Pô, você parece uma verdadeira Saddam Hussein, fica querendo controlar minha vida!

Aquela comparação tirou Laura do sério, e a um ataque de soluços que durou uns bons minutos sucedeu-se surto de ódio de dar inveja ao próprio ex-tirano do Iraque. Aquilo foi demais pra mim, e eis que de repente arranco com violência a aliança do dedo e... vupt! lanço-a ao mar, para que seja engolida por um peixe. Ali houve choro e ranger de dentes. Dias depois, Laura partiu pra casa da mãe.

Todo dia, cedinho, antes de ir trabalhar, desço a Constante Ramos a caminho da praia, desfilando a meia-idade e a solidão. Percorro o trecho onde atirei a aliança ao mar. Deus escreve certo por linhas tortas, e um dia o mar há de devolver a aliança. Ao que telefonarei eufórico para Laura, e anunciarei a boa nova. As trombetas soarão.

E seremos reconduzidos ao paraíso perdido.

Sobre o Autor

Ivo Korytowski: Ivo Korytowski nasceu no Rio de Janeiro em meados do século passado. Graduou-se e licenciou-se em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Publicou dois livros: Édipo (Editora Ciência Moderna), primeiro lugar do Prêmio Orígenes Lessa da União Brasileira de Escritores de 2003, e Português Prático (Editora Campus), livro de dúvidas e curiosidades da língua portuguesa ilustrado pelo Jaguar.

É tradutor profissional, tendo traduzido quase cem livros de variados assuntos e autores, entre eles Stephen Hawking, Richard Bach e Paul Auster. Mantém uma coluna sobre a língua portuguesa, Português Divertido, em www.mayte.us/portugues.htm.

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