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Um Hitchcock Menos Amado

por Chico Lopes *
publicado em 22/04/2004.

A primeira vez que vi Marnie - Confissões de uma ladra (Marnie, 1964) foi no cinema de minha cidade natal. Creio que tinha dezessete anos e compreendia mal os filmes - tinha sofrido por não ter podido ver Os pássaros e passara a esperar outros filmes de Hitchcock com enorme ansiedade, de modo que Marnie, que era esperado pelo público em razão de trazer Sean Connery num papel que não o de James Bond (naqueles anos, 007 era adorado por meio mundo; pelas mulheres, principalmente), foi recebido com certo desapontamento. O que havia nessa história que as pessoas não gostavam muito dela?

Não sei. Lembro-me do filme com uma emoção especial, porque gostava da apresentação da Universal, a música de Herrmann me afetava pela dramaticidade e a melancolia e as cores eram fortes, incisivas: a mulher morena, de tailleur cinza, com uma bolsa intensamente amarela, anda numa linha reta, silenciosa, e, de repente, ei-la lavando os cabelos numa pia, onde o negrume se desfaz um pouco como nas cenas de transformação de Judy Barton em Madeleine Elster em Um corpo que cai, emergindo da morenice como uma sereia: a blonde Tippi Hedren. Era uma atriz fraca, mas carismática (muito em virtude da direção) em Os pássaros.

Isso, e os flashes da cor vermelha que assustavam a heroína, foi o que me ficou do filme. Mas o psicanalismo era óbvio demais, Freud para bancas de revista, e fiquei com uma lembrança desigual. Anos mais tarde, vi o filme na tevê, na casa de uma vizinha, em preto e branco, e outra vez vi freudismo em excesso, mas comecei a olhar melhor, a refletir, a repensar, a compreender. Concordo hoje em dia com François Truffaut, para quem é uma obra-prima abortada, "um grande filme doente", um Hitchcock que a crítica subestimou por uma série de fatores (entre os quais a pouca expressividade de Tippi Hedren, que, no entanto, era bonita, e revista, parece um pouco com Catherine Deneuve; é quase certo que a "loira gelada" que Deneuve fez em A bela da tarde (1967), de Buñuel, é um eco dessa mesma frígida Hedren: Buñuel apreciava Hitchcock). Passei a vê-lo assim, e comecei a amá-lo. Hoje, sei que é dos maiores de Hitchcock, mas não encontro gente que o defenda com muito ardor.

É um filme em que, tenho certeza, o vitoriano Hitchcock colocou muito de seu puritanismo neurótico. Marnie é uma alma em que a idéia de pureza se associa de tal modo a um ideal rígido que é imperioso conservar-se além de tudo que é sexual, por temor a uma violação.
Naturalmente, não se tem um ideal desse tipo sem pagar por ele com uma neurose grave, ela é cleptomaníaca e seus roubos são o que filme oferece de mais erótico - cercados de preparos, de tensão, de ritos, sacramentos, exigindo sempre um tanto do risco e da aventura que há em todo contato sexual: a mudança de identidade, a maquiagem, as viagens de um estado americano a outro.

Mas, um artista não é apenas um expositor de sintomas caros a um teórico de Psicanálise que possa se esbaldar com a confirmação de suas idéias. E Marnie tem a dignidade sofrida de alguns neuróticos - prefere multifacetar-se em identidades forjadas, roubar, esquivar-se aos homens, para não perder alguma coisa que acredita ser mais importante que a vida comum, estabelecida, "safe and sound". O filme parece, às vezes, ser a metáfora de uma pureza sofrida, de uma integridade que resiste ao fetichismo, à intrusão. Porque Sean Connery, o marido que ela é forçada a ter para não ir para a cadeia, é um fetichista: Marnie é para ele um objeto sexual exótico, uma figura que quer ter à sua mercê para analisar, dissecar, como os animais dos Trópicos que o interessam em seu álbum de Zoologia, folheado ostensivamente. Ele sabe de seus segredos e pode entregá-la à polícia a qualquer momento, o que garante que ela permaneça ao lado dele, fazendo com pouca resignação o papel de esposa, mas sem em nenhum momento querer dar-se. Ao contrário: na noite de núpcias em navio, desaparece, deixando-o desesperado, porque ele pensa que ela se atirou ao mar. Não: atirou-se numa piscina interna, de onde ele a retira como Scott retirou Madeleine das águas da baía de San Francisco em Um corpo que cai. Explica que sua idéia era a de matar-se, não a de ser comida pelos peixes. Tem um tal ódio a seu carcereiro - um homem tão desejado por todas as mulheres do mundo naquele momento - que o filme cresce muito em interesse devido a essa rejeição tremenda, determinada, inquebrantável.

Deve ser a maior ironia que Hitchcock dirigia ao público e pode explicar, em parte, o insucesso do filme: essa é uma história em que a Cinderela consegue o Príncipe, mas está longe de querê-lo. Gata Borralheira às avessas, dessa vez o Príncipe lhe parece um sapo e tudo que deseja é fugir. Como isso é comprovadamente impossível, passa a agir como um pobre animal esquisito, acuado, de posse de um colecionador perverso que mal se importa com o ódio que desperta porque quer obter amor. Mas ele a ama - o que é um pouco uma fraqueza comercialmente concessiva da produção - e isso que fará com que deixe de ser um mero taxidermista e se interesse pela alma que há nesse espécime capturado por engenhos de chantagem moral. A forte presença erótica de Sean Connery, sua necessidade veemente de possuir Marnie, foi freada pela produção, e, assim, ele passa a ter um aspecto protetor, bondoso, paciente, que contradiz um pouco o que vai pelo seu olhar, pelos seus gestos. É quase como um homem forçado a ignorar uma ereção cavalar e portar-se como um cavalheiro, mas sem convicção.

Marnie é um filme de estrutura muito simples, com implicações morais, existenciais e estéticas bastante intrincadas e abrangentes, como em geral acontece nos melhores Hitchcocks. Tem um uso apurado da cor, e nas revisões isso é ainda melhor percebido. No entanto, esse uso se baseia num padrão universal muito simples: branco para pureza e tranqüilidade, vermelho para aflição e repulsa.

A eficácia dessa idéia, do ponto de vista cinematográfico, não pode ser contestada. Quem é que não leva um susto de cair quando ela, trabalhando inicialmente na firma de Mark Rutland, o futuro marido indesejável, com uma blusa imaculadamente branca, deixa cair nesta, acidentalmente, um pingo de tinta vermelha, e sai correndo para o banheiro para lavá-la, quase, nesse momento, perdendo a sua máscara de eficiência e impassibilidade e se exasperando em surdina? Um nada instintivo pode pôr a perder todo um edifício de artimanhas e cálculos cerebrais. Somos criaturas ameaçadas, todos nós, e Marnie, nesse momento, é um símbolo universal de nossa precariedade como seres de máscara, de persona, de ritos civilizados.

É que carrega um trauma de infância, ligado a sangue, que só é revelado ao fim do filme e nem precisava ser tão literal, embora tenha seu vigor dramático. Mas, no uso do branco, a idéia é excelente - suprimindo o vermelho, ou melhor, tentando suprimi-lo sempre que possível, Marnie reivindica o branco como uma espécie de trégua indefinida: ela quer a vida toda em branco, um corpo em branco (nenhum toque masculino; permanece virgem), e, se multiplica suas identidades, é porque aspira a ser todo mundo e ninguém, não quer estar em ponto fixo algum porque um ponto fixo se define como alvo e porque a obrigaria a encontrar-se consigo mesma, com uma certa menina para sempre aterrorizada, coisa que evita por todos os meios.

A mãe, a atriz Louise Latham, é uma das grandes coisas desse filme: com suas muletas, com um ar de permanente amuo, de insatisfação egoísta, exigente, incapaz de dar-se com a filha que a faz lembrar-se de tudo que deseja esquecer em si mesma, que dor, que aridez, que solidão, que desespero há nessa mulher! Puritana obstinada, com sua Bíblia, exerce a repressão como vingança, como um esforço para tirar do caminho toda uma vida sensual que, afinal, é impossível reprimir e ignorar. Guardiã da moral mais rígida, foi uma prostituta, e ensinou a Marnie o horror aos homens, apaga da mente da filha tudo que se refira à tragédia. Já mulher, Marnie, sempre que rouba, vai lá à casa materna levar a ela um presente caro, algo que lhe possa garantir um pouco de amor da mulher, como uma pedinte. Ela, aliás, fica de tal modo presa a essa mãe que não quer nada além de uma infantilidade perpétua e segura, imune aos confrontos com a vida; manter-se virgem, mentir, roubar, tudo, menos ceder àquilo que uma realidade exogâmica, masculina, cobra naturalmente - ela se recusa a sair do útero, que, claro, vai-se tornando, com o tempo e as circunstâncias que a realidade impõe, cada vez menos confortável, cada vez menos viável; ficaria eternamente nessa indiferenciação pseudo-paradisíaca se Mark, o marido, não surgisse, ainda que do modo menos convencional e mais truculento. Seu amor por cavalos revela, na verdade, o quanto só pode se relacionar com o natural, o instintivo, sob condições de docilidade assegurada - o cavalo aí é um sucedâneo óbvio do masculino, mas ela tem as rédeas. Mas terá que confrontar-se com o mais temido dos bichos - o homem - sem alternativas.

Ela é, o tempo todo, um bicho capturado que se move de um lado para outro numa jaula (o casamento) com os olhos procurando um horizonte de fuga, em desespero. Na história do Cinema, há poucas cenas tão belas e tão dignas como aquela do momento em que, na noite de núpcias, Connery, exasperado, quer forçá-la ao sexo, e ela deixa cair seu "peignoir" rígida, quase catatônica, concordando com entregar o corpo desde que a alma fique absolutamente alheia, e ele, compreendendo, a cobre de novo, com delicadeza. A tentação de atirar-se na água corresponde ao desejo de não nascer ou ao menos não sair de lá, do útero daquela mãe cuja generosidade instintiva foi destruída de tal modo pelo puritanismo.

Ela participa de uma caça à raposa e como compreendemos bem a sua compaixão do bicho que é implacavelmente caçado! O que ela é senão uma outra espécie de raposa e o que é a sociedade humana senão um teatro da crueldade, da morte, da posse, da tirania, encoberto e justificado por vernizes civilizados? É depois dessa cena apoteótica de caça que Marnie, sofrendo um acidente, precisará sacrificar seu cavalo e, depois, para compensar-se dessa perda drástica, precisará roubar, roubar do cofre de seu marido, o que não consegue mais. O marido, nesse momento, intervirá para dizer que o dinheiro, aquele, não era inacessível, era dela, e forçará que o pegue.

Vence. Poderá, então, levá-la até à casa do passado e lhe desmascarar a mãe, afinal uma mulher que queria apenas proteger a filha, naturalmente que muito lá à sua maneira. Há, nesse final, alguma beleza, mas sente-se que Connery ficou com um papel ingrato: o de um protetor excessivo, inverossímil por todo esse interesse. É um amor grande demais por uma mulher fria, alheia, ingrata, que cometeu tantos roubos e por quem ele terá que fazer uma coisa que um milionário real não faria com tanta boa vontade: repor o dinheiro nas empresas lesadas. É de fato o Príncipe. O que remete o filme a uma fantasia hollywoodiana não muito congruente numa produção dessa espécie.

Independente de todos os seus defeitos, levado pela música de Herrmann e pela beleza de algumas cenas, sempre que revejo Marnie, sinto estar revendo um filme que trata de muito mais do que aquilo que parece tratar.

Trata de um problema fundamental: temos uma alma, e convém não negligenciar a atormentada dignidade do ser humano. E aí que Hitchcock mostra a sua superioridade sobre seus imitadores: ele trabalha sobre um fundo em que uma moral, uma idéia elevada da espiritualidade humana é pressuposta, donde a sua emotividade neurótica nos perturbar mais que as de outros diretores menores. Decretar que esses valores são apenas tapumes de neuroses é acreditar, numa distorção de Freud, que se pode descartar a idéia de alma bastando para isso dizer que tudo se reduz a frustrações sexuais, a desejos insatisfeitos, a apetites interditados pelo superego. Seríamos todos, basicamente, apenas uns mecanismos estrambóticos que se obstinassem em não aceitar a simplicidade da vida, a idéia de que tudo é corpo, instinto, satisfação imediata. Nada mais baixo e mais alheio a um artista.

Nesse ponto, é preferível um católico reprimido que não perdeu de vista a grandeza ontológica da criatura humana privada de Deus que um permissivo enlouquecido para o qual tudo não passasse de álibi de corpos - apenas corpos - feridos e famintos.

A grandeza da criatura é essa de estar enredada no drama essencial de luz e sombra, espírito e carne, culpa e redenção, que a distingue do resto da Criação. Não percamos de vista que Marnie se resume a um problema de confissão (o que aproxima o filme do approach psicanalítico tanto quanto do religioso) - ela está trancada em si, ela cultiva um egoísmo bélico porque não quer diferenciar-se, sair de seu pequeno paraíso psicótico em que mais definha quanto mais acredita se proteger e isolar, ela não quer e não pode abrir-se ao Outro. Ao confessar-se, entrega-se, confia, passa a ser humana, a não querer ser mais ser essa mulher que estava predestinada a ir para a cadeia. Rejeitou a prisão maior, escapou da pior das cadeias - a do narcisismo que coisifica - e precisa da vida de um ser humano, de uma mulher que encontrou seu homem, finalmente. A última imagem - a das meninas que brincam, cantando musiquinhas infantis, tendo ao fundo o cenário portuário - é realmente a de um adeus. Adeus a uma infância que tardou demais em ser deixada.

Sobre o Autor

Chico Lopes: Chico Lopes é autor de dois livros de contos, "Nó de sombras" (2000) e "Dobras da noite" (2004) publicados pelo IMS/SP. Participou de antologias como "Cenas da favela" (Geração Editorial/Ediouro, 2007) e teve contos publicados em revistas como a "Cult" e "Pesquisa". Também é tradutor de sucessos como "Maligna" (Gregory Maguire) e "Morto até o anoitecer" (Charlaine Harris) e possui vários livros inéditos de contos, novelas, poesia e ensaios.

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Francisco Carlos Lopes
Rua Guido Borim Filho, 450
CEP 37706 062 - Poços de Caldas - MG

Email: franlopes54@terra.com.br

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