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Submissões Premiadas: O Sucesso Que Abençoa

por Chico Lopes *
publicado em 21/10/2005.

Apesar de toda a propaganda favorável, não fui ver “Dois filhos de Francisco” , o filme de que mais se falou neste segundo semestre, mas creio que as razões que me levaram a não ir vê-lo valem um pequeno ensaio.

Primeiro, os comentários que mais ouvi, entre populares (sou daqueles que ficam de ouvidos ligados em conversas de ônibus, porque as acho muito reveladoras), começavam com aquelas declarações insuportáveis do tipo “Pô, fui ver; filmaço! Chorei muito...” É o velho abismo do sentimentalismo, em que se cai sempre com complacência: se o sujeito chora, sente-se virtuoso, sente-se bem, acha que o filme visto é de primeira, acha que ele próprio é um ser humano admirável, e, pronto, a chantagem e a manipulação foram realizadas com perfeição.

Segundo, vi em programas de tevê aprovados por certa classe média confortável que se quer intelectualizada – me refiro ao “Sem Censura” , simpático, mas sintomático, da rede educativa – uma série de comentários, que invariavelmente podiam ser resumidos assim: “Muita gente, mesmo não gostando de música sertaneja, foi ver, e achou ótimo. A gente (certamente “nós, os finos”) tem muitos preconceitos e precisa vencê-los...”

É uma fraseologia inevitável, que parece bem intencionada e tudo que consegue é ser altamente discutível, porque preconceitos, todos têm, e alguns, é importante viver com eles de maneira honesta, até porque podem ser muito úteis e fundamentados, ora. E, se alguém não gosta de música sertaneja, não significa necessariamente que goste de bom cinema e seja imune a certas chantagens melodramáticas. Depois, a classe média que lê “Veja” , vê “Sem Censura” , porta o ”Código Da Vinci” debaixo do braço e só por isso se acha fina, é, na verdade, apenas rasteira.

As discussões podem ir muito longe, mas a tática dos meios de comunicação e da publicidade em torno do filme foram a de simplificar tudo e de reduzir os resistentes ao sucesso a um bando de chatos que não querem sair de seu elitismo, que não se deixam sensibilizar, esses pulhas intelectuais, pelas “coisas do coração”. Ora, por uma resistência instintiva, natural, digamos, eu me senti entre esses pulhas, já que:

1) Não gosto dessa música que passa por sertaneja, odiosa, preconceituosa, estúpida, ela sim um verdadeiro manancial de ignorância, não de cultura, popular, hoje em dia;

2) Não acho que chorar confira a alguém uma espécie de superioridade moral, já que nem precisamos mencionar os crocodilos, cuja boca imensa e cheia de dentes convive infalivelmente com as lágrimas;

3) A propaganda sempre remete à absolvição moral, pelo sucesso – se uma coisa atingiu um grande número de pessoas, fez alguma unanimidade, pronto, resistir a ela passa a ser chatice ou estupidez; automaticamente, ergue-se uma sentença moral favorável ao oportunismo mais vulgar que quer passar por sentença de bom senso respaldada na “popularidade”, e os que discordam não podem escapar – hoje em dia, vivemos cercados de carrascos sorridentes e simpáticos, todos argumentando em favor da facilidade e do dinheiro;

4) “Coisas do coração”, bem sabemos, podem provir é de outros lugares – de cabeças muito calculistas e de barrigas cheias que adoram falar de uma miséria que não é delas, para comover e aumentar o movimento da caixa registradora que permitirá que cresçam ainda mais. Por vezes, essas “coisas do coração” provêm mesmo é de outros órgãos bem menos nobres.

O interior é isso mesmo? Uma resistência mais que necessária

Me sinto pessoalmente ofendido quando ouço e vejo, nesses programas de televisão relativamente intelectualizados, o estereótipo das “coisas do interior” continuar intacto. Em se tratando de cinema brasileiro, é assim – o padrão Mazzaropi é o que prevalece. Há alguns anos atrás, havia um padrão um pouco mais honesto para a avaliação dessas coisas – sabia-se que os filmes de Mazzaropi eram horríveis e mal se tentava defendê-los esteticamente. Isso não mudou, naturalmente – aqueles filmes são indefensáveis, a não ser sob um ponto de vista estritamente saudosista, e mesmo um saudosista honesto, que se puser a revê-los em DVDs, não deixará que suas emoções lhe turvem o entendimento e o bom senso. Eram uma mistura calculista de atraso, sentimentalismo e estupidez, e o fato de fazerem sucesso não nos anima a pensar bem de nosso público.

Pois, hoje em dia, debaixo de uma ditadura de mercado e de massa que não conhece peias, o processo é inverso: por fazer sucesso, um filme sentimentalóide e “popular” automaticamente precisa ser reconhecido como um fenômeno digno de apreço pelos mais cultos ou apenas instruídos. O que “vem de baixo” passou a ser legítimo, desde que faça sucesso, claro. Os sujeitos mais refinados, agora, se permitem ficar emocionados e chorar copiosamente por uma obra como “Dois filhos de Francisco” – “ oh, essas pessoas tão simples, tão humanas, tão cheias de coração e de fé! Com o dinheiro que nos rendem, são maravilhosas, realmente. É preciso reconhecer que estão cobertas de razão, em sua simplicidade...” É a perfeita cara-de-pau dos comerciantes felizes com os lucros, mascarada com simpatia a mais cínica.

O que sei do filme já me valeria para comentá-lo, se eu fosse desonesto, porque a propaganda foi tão maciça, e as revistas especializadas falaram tanto dessa história, que, mesmo eu tendo fugido sempre de rádios ou toca-CDs que me fizessem chegar aos ouvidos aquelas coisas da tal dupla sertaneja, conheço a história do pai que ouvia rádio e decidiu, mesmo sendo considerado louco, que os filhos tinham que ser um sucesso, que seriam uma dupla sertaneja milionária, fizesse o sacrifício que fizesse. Isso me cheira muito mal.

Cheira mal, porque legitima esse Brasil popular onde um coitado qualquer pode virar de tudo – e não importa o quê, pastor evangélico, cantor popular, presidente ou traficante, desde que seja um sucesso, desde que possa fazer chorar de gratidão aos que nele acreditaram e investiram, numa mistura de amor e cálculo que a hipocrisia força para que achemos sempre sublimemente justificada pelo primeiro.

Pense-se na possibilidade de contar essa história de um modo diferente: esse homem, Francisco, seria considerado louco completo, isto sim, se, nos fundos do sertão, ouvindo uma rádio educativa (é impensável?), cismasse de tornar um filho seu pianista, executante de Chopin, Brahms ou Ernesto Nazareth. Não haveria diabo que o defendesse ou compreendesse, e ele seria muitíssimo mais heróico, mas certamente não renderia um filme popular como esse. Porque, claro, a música sertaneja, o sucesso que o filme exalta, é a própria trilha-sonora de um Brasil ignorante, raso, vulgar, cheio de preconceitos estes sim peçonhentos, mas perfeitamente abençoados pelo Sistema. É o Brasil dos prêmios pela submissão, das conversinhas cor-de-rosa para boi dormir de Ana Maria Braga, das explicações óbvias-sobre-o-óbvio do presidente Lula, que parece ver o país inteiro como um moleque bocó que tem que ser ensinado sobre as noções mais primárias.

Chopin, Brahms ou Nazareth são coisas de elite, não é? Não, são coisas boas, simplesmente, música verdadeira, decente, de primeira. Mas, como a cultura de massa, de mercado, abole a noção de hierarquia de qualidade sempre que seus interesses comerciais se colocam à frente, é preciso privilegiar “aquilo de que o povo gosta”. A desonestidade está em mascarar isso com toda espécie de eufemismo, é nunca ter a coragem de dizer que o que povo gosta – é o que eles estão dizendo, é que o que usam com o mais deslavado oportunismo – é lixo.

Fora isso, vige, nesses programas de televisão do chamado “eixo Rio-SP”, a velha noção boba de um interior bucólico, onde as almas seriam preservadas dentro de casebres, com uma fé católica imperecível. Compre essa pieguice quem quiser. O consolo barato que essa manipulação oferece deveria ser repelido com toda a força. Mas o sentimentalismo bocó vence. É que, na verdade, ele rende muito. Não há motivo mais forte que esse, embora todos os outros que o disfarçam sejam invocados. Mascara-se o comércio mais deslavado com as demagogias de sempre. Isso nunca acaba.

O duvidoso renascimento de um cinema

Reagir mal a esses fenômenos pode provocar antipatias em certos grupos, que querem defender o cinema brasileiro a todo custo, desde a “retomada do sucesso nos anos 90”, quando, segundo esses mesmos grupos (comerciais, naturalmente), o cinema brasileiro renasceu para o público, com filmes que volta e meia são indicados para o Oscar de melhor estrangeiro, são bem roteirizados, têm som decente, atores apreciáveis e já não falam, como o Cinema Novo falava, aquela língua “alegórica, politizada e chata”.

Um monte de coisas amplamente discutíveis. Não há assim tantos filmes brasileiros bons nessa retomada. A gente se surpreende, por vezes, é com a qualidade de certos curtas e documentários, que o público mal vê. O que se prega por aí é o “padrão Guel Arraes de cinema”, ou seja, televisão na tela grande, com astros da Globo e adaptações demagógicas, rasas, coloridas, cheias de confeitos visuais, da literatura brasileira, para carimbar com um selo de “garantia de qualidade cultural” um produto dúbio.

Pode-se dizer que “Auto da compadecida” e “Lisbela e o prisioneiro” eram filmes muito mais esfuziantes, histéricos e coloridos que propriamente divertidos. No entanto, foram vendidos com tanta eficiência, tantos lances de marketing, pela maior emissora de televisão do país, que quem foi vê-los, para gostar deles, era só preciso não resistir muito. Quando se conseguia resistir. A lobotomização via televisão é quase um fato consumado.

Quem venceu, de fato, nesse joguinho de cartas patentemente marcadas, foi a telinha. Todos querem ou precisam aparecer nela, para terem seus filmes vistos – e não por tanta gente – nos poucos cinemas que restaram nas cidades brasileiras.

Animamo-nos, no momento, com o sucesso internacional de Fernando Meirelles pelo “O jardineiro fiel” . Mas, não esquecer que é um filme quase totalmente internacional e, a despeito de todo o talento de Meirelles (reconhecido por “Domésticas” e “Cidade de Deus”), é um filme que pode valer um Oscar de melhor ator para Ralph Fiennes ou de melhor atriz para Rachel Weisz. Se Meirelles ganhar, será sim um diretor brasileiro, mas de um filme que de brasileiro não tem nadíssima. Aliás, parece ser o destino irônico do Brasil que sonha com o Oscar, submisso à cultura cinematográfica estrangeira, o de sempre ser contemplado com o prêmio por uma produção que de brasileiro tem muito pouco, caso de “O beijo da mulher-aranha” , que premiou o americano William Hurt.

Enfim, o necessário é que se tenha lucidez, que não se tenha um deslumbramento automático. Temos que fazer o papel antipático de discordar, sempre que necessário. E engrossar a fileira dos que permanecerão marginalizados pela tirania popular da euforia, avalizada por intelectuais cujo oportunismo não conhece limites.

Sobre o Autor

Chico Lopes: Chico Lopes é autor de dois livros de contos, "Nó de sombras" (2000) e "Dobras da noite" (2004) publicados pelo IMS/SP. Participou de antologias como "Cenas da favela" (Geração Editorial/Ediouro, 2007) e teve contos publicados em revistas como a "Cult" e "Pesquisa". Também é tradutor de sucessos como "Maligna" (Gregory Maguire) e "Morto até o anoitecer" (Charlaine Harris) e possui vários livros inéditos de contos, novelas, poesia e ensaios.

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Francisco Carlos Lopes
Rua Guido Borim Filho, 450
CEP 37706 062 - Poços de Caldas - MG

Email: franlopes54@terra.com.br

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