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Cinema e Literatura: Dança e Tropeço

por Chico Lopes *
publicado em 19/02/2004.

A freqüência com que se adapta obras literárias para a tela faz com que o debate sobre a qualidade dessas adaptações venha à tona, resultando em polêmicas que parecem por vezes desnecessariamente longas e estéreis ou apenas servem de álibis publicitários para que se fale nem tanto do livro, mas do filme, já que é notória a pouca inclinação que os jornais sentem pela literatura (um típico repórter jovem, da era Spielberg, jamais saberá quem é esse tal Homero, e poderá considerar até estupidez que lhe digamos que ele tinha o dever de sabê-lo).

Estou há vinte anos escrevendo sobre filmes e há dez comentando-os no cinevideoclube do Instituto Moreira Salles de Poços de Caldas (MG).Não me considero um crítico de Cinema - sou antes um cinéfilo, tenho prazer maior em admirar acertos do que em dissecar malogros.

Sempre vi os filmes com a paixão de um escritor. Os filmes, para mim, são uma paixão visual que alimenta uma paixão literária. Ao escrever sobre eles, creio estar fazendo uma outra forma de literatura. De modo que as duas coisas se fundem em mim e foi uma felicidade que, em meu primeiro livro de ficção publicado - "Nó de sombras", contos - o prefaciador Ignácio de Loyola Brandão tenha escrito que meus contos lhe pareceram roteiros de filmes.

Me sinto autorizado a dar alguns palpites sobre esse terreno classicamente contraditório.

Dos livros para os filmes, todo mundo que aprecia Cinema - e isto será tanto mais agudo se se tratar, concomitantemente, de um apreciador de Literatura - sabe que alguma coisa - mesmo muita - fica perdida. Para o público, isso não chega a se constituir um drama, posto que o espectador comum vai ver um filme sem se importar que ele tenha saído de um livro de sucesso ou de grande prestígio literário; às vezes, até sabe, mas não se preocupou em ler essa fonte ilustre, porque lhe interessa o mais imediato: ver o filme. Por vezes, gostando do que a tela lhe deu, até procurará o original na livraria, e, lendo-o, poderá achar o filme francamente superior. Do mesmo modo como o espectador que fez a leitura antes de ir ao cinema poderá ter se desapontado com o resultado que um livro admirado recebeu na tela.

Este último é, via de regra, um tipo mais raro. Os temperamentos literários, em nossa época, são grandemente sufocados pelos temperamentos visuais, porque sabe-se como o livro é um objeto pouco apreciado e como a televisão é, na verdade, a grande favorita. Os letrados são figuras bizarras, no contexto de atraso e de incultura imperativos em que vivemos. Uma vez, ao comentar um filme na televisão, tive que mudar meu texto pra que fosse ao ar, já que um elemento da direção implicou comigo por usar a palavra "metáfora": "Não se fala isso em tevê...". Disse-o com a arrogância de quem sabe dessas coisas e sabe que não vai ser desobedecido. Os fabricantes de lixo são senhores da alma popular.

A diferença clássica que se estabelece entre filme e livro, como premissa, é a da natureza das linguagens, uma visual, outra literária. No primeiro, as adesões são sempre mais fáceis e simples - na segunda, tem que haver colaboração da imaginação de quem lê, uma colaboração criativa, de cor subjetiva e emocional muito forte, que pode dar ao leitor até uma ilusão de propriedade emotiva daquilo que imaginou (o que dá em propensão para achar as transposições empobrecedoras). O espectador de cinema é mais frívolo, mais comprometido com o entretenimento, com divertir-se e emocionar-se ou não, e crê que isso lhe basta.

A Sétima Arte nasceu como um entretenimento de plebe e por muito tempo foi vista assim entre intelectuais e gente esnobe. Os filmes, desde sempre, pareceram fadados à diversão - tanto que o chamado "cinema de arte" sempre foi considerado coisa de um público distinto. Mas, tudo isso ficou bem mais complicado depois que a revista francesa "Cahiers du Cinéma" provou, nos anos 50, que diretores comerciais famosos em Hollywood como mestres de suspense, faroeste, musicais - um Hitchcock, um Ford, um Minnelli - é que eram grandes artistas, renegando cineastas franceses clássicos, que estes sim seriam, a seu ver, meros burocratas a serviço de adaptações que tinham mais de Teatro e de Literatura que de Cinema propriamente. E o polêmico conceito de "cinema de autor" surgiu assim.

Um diretor de grande reputação, Alfred Hitchcock, foi durante muito tempo visto como um mero artesão comercial de um gênero, o "suspense", tido como agressivamente popular e concessivo. Quando alguns intelectuais se arriscaram a emitir sobre sua obra um juízo favorável, houve, entre eles, quem lhe sugerisse que adaptasse um romance como "Crime e Castigo", de Dostoiévsky, que teria afinidade com seu estilo de cinema. Disse ele a François Truffaut, no livro "Entrevistas", que nunca poderia ter adaptado o livro satisfatoriamente, que "Crime e Castigo" era obra de um outro e, que para ser justo, o filme adaptado teria que ter a mesma extensão de palavras, reproduções dos diálogos etc. Ele, aliás, sempre preferiu, para roteiros de seus filmes, histórias extraídas de livros policiais por vezes da categoria mais duvidosa. Fez uma leitura elogiada do livro "Pacto Sinistro", da escritora Patricia Highsmith no começo dos anos 50. Mas a maior parte de seus filmes procedia de material literário de segunda linha. A obra-prima "Os Pássaros" vem de um conto de Daphne Du Maurier, de uma coletânea popular, que ele jurou ter lido muito por alto.

Recentemente, o grande sucesso do filme "Os Outros", de Alejandro Amenábar, fez com que se falasse outra vez do clássico "Os Inocentes", filme inglês de 1961, em que foi inspirado. Este é, para mim, o melhor exemplo de como um livro pode ser bem adaptado para o cinema.

A origem de "Os Inocentes" é uma novela clássica de fantasmas, "A Volta do Parafuso", de Henry James. O roteiro do filme foi confiado a um escritor: Truman Capote. O diretor, Jack Clayton, conseguiu o milagre: o filme flui como a leitura do livro de James, magnificamente bem servido por atores que passam a ser, para quem leu o livro anteriormente, aqueles personagens que tinham rostos literários, isto é - nada precisos. A preceptora, que narra a história original, nunca mais deixou de ser, para mim, a encarnação que a atriz Deborah Kerr dela fez, e o espectro do personagem (chamado Peter Quint) passou a ser, para mim, aquele rosto que nos pregou um susto inesquecível aparecendo por trás de uma janela subitamente. Além disso, a ambiguidade de Henry James - que nunca deixa claro se a preceptora viveu tudo aquilo ou apenas, com uma solteirona freudiana problemática, o imaginou - é perfeitamente captada.

O mesmo Jack Clayton, no entanto, dirigiu em 1974, na América, uma adaptação de que se esperava muito - "O Grande Gatsby", de F. Scott Fitzgerald, que foi um fracasso de crítica e de público e um filme imensamente inferior ao livro que o inspirou.

Para ficarmos no cinema brasileiro, os exemplos que me ocorrem com mais frequência são os de duas boas adaptações - a primeira, de Nelson Pereira dos Santos para "Vidas Secas" (1963), de Graciliano Ramos, e a segunda, de Suzana Amaral para "A Hora da Estrela", de Clarice Lispector (1985). "Vidas Secas" se parece organicamente com o livro que lhe deu origem, e algumas de suas imagens nos surgem espontaneamente ao lembrarmos da família do vaqueiro Fabiano, da cachorra Baleia, daquela gente miúda e esquálida vagando pela caatinga. Um ótimo exemplo de tradução visual feliz está no momento em que um dos filhos do casal pergunta à mãe o que seria Inferno e ela lhe responde: um lugar de muito fogo, de espeto quente...O menino, sem entender, olha para o sol, olha para a galharia das árvores secas, murmurando sonhador, especulativamente: "Inferno... espeto quente...", e temos cinema, sem em nenhum momento haver traição ao espírito do clássico literário de Graciliano Ramos.

Suzana Amaral fez da obra-prima de Clarice Lispector um filme brasileiro desses que não se esquece, pela precisão e o lirismo. O leitor que teve o livro na mão e o venerou muito antes de ver o filme - o meu caso - não se desapontou nem um pouco com ver Marcélia Cartaxo como Macabéa e José Dumont como Olímpico, sem esquecer a magnífica Fernanda Montenegro como uma cartomante que tem uma ponta decisiva na história. Ademais, Suzana Amaral conseguiu andar na corda bamba entre o humor e o penalizante e patético, o realismo social e o fantasioso da vida da obscura imigrante nordestina em São Paulo (no original, o livro se passa no Rio) com extrema delicadeza. Omitiu o truque principal da novela original de Clarice - o autor, que é masculino, e que vai criando o livro, com um papel dramático na relação com o personagem criado - Macabéa - que dá à narrativa camadas e camadas de significação. Essa omissão não parece uma falha, mas uma escolha que limita a narrativa cinematográfica à sua especificidade. O filme se sustenta pela simplicidade e pela grandeza dramática e humana. É quase certo que Clarice teria gostado de vê-lo e ficado orgulhosa com o resultado.

Mas, os insucessos são maiores que as felicidades nessa relação Cinema e Literatura. A relação pode dar em parceria de dança muito ajustada, mas pode dar em dançarinos que tropeçam um no pé do outro e jamais conseguem se entender, embora tendo a mesma música ao fundo.

Exemplo recente? O tão falado "Carandiru", de Hector Babenco. Quem leu o livro que lhe deu origem, de Dráuzio Varella, e ficou satisfeito com o filme, foi um leitor distraído e um sujeito inclinado a ser indulgente com qualquer sucesso popular que vá ver na tela. Porque é um filme muito fraco para um diretor que nos deu belas adaptações da literatura como "O beijo da mulher aranha", extraído do livro de Manuel Puig, e "Ironweed", extraído de "Vernônia", de William Kennedy. Pode-se avançar nisso: "Carandiru" deve ser o filme mais débil da carreira de Babenco, inferior ainda ao muito criticado "Coração iluminado", que ao menos trazia belezas e pungências, já que tão autobiográfico.

"Carandiru", o livro, com suas muitas "histórias de vida" e depoimentos, apresentava um problema especial para adaptação cinematográfica: quais histórias escolher, entre tantas. Babenco fez a sua escolha, e não haveria problema nenhum se não se não as tivesse deixado tão frouxas e sentimentalóides. Pensou num filme que atingisse um máximo de público, e conseguiu. Como não deduzir que se tratou de uma operação meramente comercial colocar Rodrigo Santoro, galã "global", como um travesti que se interessa por um tipo feio, mesmo repulsivo, provocando no público reações que só fazem corroborar o eterno preconceito anti-homossexual? O grotesco do "casal" é precisamente o esperado pelo público. E mais: histórias de bandidos que procuram nos comover, dando a entender em óbvio escancarado que "são tão humanos como nós", como se não soubéssemos disso, como se fosse esse o ponto que a arte precisasse necessariamente atingir. Aí, Babenco cai no "novelão" e nunca é uma operação inocente: um prisioneiro que, no momento do massacre, morre em forma de cruz na cela, os presos cantando o hino nacional etc. É um triste paradoxo que esse filme, arrancando milhões nas bilheterias, seja o de maior sucesso popular de uma carreira que já teve pontos artisticamente muitíssimo mais altos.

O livro pode sugerir filmes que o espectador que o leu gostaria de poder fazer e que, observa, consternado, não foram os efetivamente feitos. O filme pode ter nascido de um livro menor e sugerir coisas que, bem aproveitadas, dariam em literatura de qualidade superior.

A multiplicidade dos caminhos e possibilidades propõe um debate que nunca se esgotará

Sobre o Autor

Chico Lopes: Chico Lopes é autor de dois livros de contos, "Nó de sombras" (2000) e "Dobras da noite" (2004) publicados pelo IMS/SP. Participou de antologias como "Cenas da favela" (Geração Editorial/Ediouro, 2007) e teve contos publicados em revistas como a "Cult" e "Pesquisa". Também é tradutor de sucessos como "Maligna" (Gregory Maguire) e "Morto até o anoitecer" (Charlaine Harris) e possui vários livros inéditos de contos, novelas, poesia e ensaios.

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Francisco Carlos Lopes
Rua Guido Borim Filho, 450
CEP 37706 062 - Poços de Caldas - MG

Email: franlopes54@terra.com.br

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