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Aberratio Ictus

por Antonio Luiz Fontela *
publicado em 28/05/2005.

Morreu sem saber porque. Uma bala no meio da testa. Ainda tinha tanto para passear! Ali, dentro do ônibus de excursão para a terceira idade, na cadeira número vinte, ao lado da janela, como gostava, dona Eugênia imóvel, olhos arregalados. Sequer conseguiu fechá-los.

***

O Promotor argumentava:

" .... - Senhores jurados, estamos diante do que em direito chamamos de aberratio ictus. Este caso é um clássico exemplo dessa figura jurídica. O réu, Aldemir Silva, atirou para matar Silvana. No entanto, por má pontaria, atingiu a vítima. Ele mesmo quem relatou no seu interrogatório. O meritíssimo juiz lhe perguntou se estava arrependido de seu ato. Ele respondeu que sim, pois queria mesmo era matar Silvana e não Eugênia..."

***

Esse promotor fala bonito! Foi isso mesmo. Eu queria matar aquela puta e não a coitada da velhinha. Ele tá explicando direitinho. Qualquer um no meu lugar faria a mesma coisa. Os jurados vão entender. Ela não merece viver.

***

Ele estava com sessenta e oito anos. Tinha enviuvado há quatro. Conheceu a solidão. Os filhos todos na capital sequer lhe telefonavam ou escreviam. A minguada aposentadoria, a casa própria, as pequenas economias de toda a vida numa caderneta de poupança e o fusca rodado eram suficientes para sobreviver, mas não para reencontrar a alegria. Foi salvo por um amigo, viúvo também. Convidou-o para participar do clube da terceira idade. Não gostava de dançar. Ficava numa cervejinha. Muita conversa fiada. Apreciava pouco as excursões. Foi aí que Silvana apareceu. Morenaça peituda. Bunda empinada. Mexeu com ele.

- Você tá enxuto. Acho que vou me apaixonar.

Ela fora propor seu trabalho para organizar excursões. A velharada topou. Moça esperta. Trinta e seis anos. Falante. Conquistou logo a todos.

Tudo passou a ser gostoso. Silvana passou a ser sua alegria. Aprendeu passos de dança com ela. Não via a hora de excursão. Caxambu, São Lourenço, Lindóia, Caldas Novas, litoral paulista... tudo de primeira. Ela sempre sorridente... atenciosa... ele cismando: - ela está gostando de mim.

- Amanhã tenho uma excursão para o Paraguai. Vou levar muambeiros.

- Também vou.

- Não, Aldemir. É prá gente mais nova. É cansativo. Só vai comerciante e camelô.

- Mas eu quero. Posso?

- Se fizer questão... tudo bem. É só pagar o preço. Mas depois não diga que não avisei. Cê vai voltar quebrado.

- Que é isso! Ainda tem muita força aqui.

- Isso eu tenho certeza. Você é um amor!

***

- Aldemir. Tô precisando de dinheiro. Me empresta cinco mil? Pago num mês. Compro bugigangas no Paraguai e vendo logo. Pode confiar. Ainda pago juros.

Cinco mil! Quase todas as suas economias. Mas ele era um amor. Emprestaria sem medo. Receberia de volta o empréstimo sem juros. Um carinho seria a remuneração do capital.

Um mês depois, lá estava ela com os cinco mil e mais algum. Ele não aceitou o algum. Ela lhe beijou as faces. Saiu sorrindo.

Passou a lhe mandar bilhetes de amor. Propostas de amigação. Até de casamento. Ela não respondia. Passou a evitá-lo.

***

- Neste fim de semana, gente, vamos para Poços de Caldas. Quem quiser já pode fazer as reservas.

Ele, como cachorro seguindo cadela no cio, fez a reserva.

Saíram ainda noite. Já no ônibus as brincadeiras. Velharada pueril. Ele encolhido, acariciando o ferro frio na cintura. Ela alegre, brincando com todos, menos com ele. Passava por sua cadeira como se ela estivesse vazia.

- Gente! Prestem atenção! Vou fazer um anúncio! Estou namorando o motorista! A gente vai se casar logo! Todos já estão convidados.

Os velhos em coro: "até que enfim/ até que enfim/ até que enfim encontrei um trouxa/ que gosta de mim."

- Vamos fazer uma parada no restaurante para um lanche. Quinze minutos.

Ele foi o primeiro a descer. Foi direto para o banheiro. Sentiu ânsia de vômito. Voltou. Viu no balcão, tomando café, abraçadinhos, Silvana e o motorista.

***
Discursava o advogado de defesa. Sem papas na língua:

"... - Senhores Jurados: a defesa concorda in totum com a digna Promotoria. Houve, in casu, um erro na execução. É assim que os senhores devem analisar o caso. Para o direito, a vítima não foi a senhora idosa, que, infelizmente, perdeu a vida. A vítima foi Silvana... Silvana, a cortesã! Silvana, a prostituta! Silvana, a vigarista! Silvana, a exploradora deste pobre idoso, de quem tomou todas as economias! Silvana, a víbora... o demônio... só existe uma pessoa responsável pela tragédia: Silvana..."

***

Falou direitinho o doutor. Eu tinha que matar aquela puta dos infernos. Era minha obrigação de honra.

***

Ele foi o último a entrar no ônibus. Silvana estava no fundo, conferindo os passageiros. Subiu os degraus, passou a mão na cintura, puxou a garrucha e disparou. Não se recorda de mais nada.

***

Silvana, após a tragédia, sumiu. Nunca mais foi vista. Sequer foi ouvida no processo. Consta da certidão do Oficial de Justiça: "Mudou-se para lugar incerto e não sabido".

***

Aldemir não foi absolvido. Pegou pena pequena. Sequer teria necessidade de se recolher à prisão. Cumpriria em casa. Os jurados saíram com a sensação do dever cumprido. A puta que vá para a puta que a pariu.

Sobre o Autor

Antonio Luiz Fontela: O autor é escritor, advogado e reside em Poços de Caldas. Publicou “Memórias de um descasado” (Edicon) e “Pedalando” (Sul Minas), o primeiro um romance com toques autobiográficos e o segundo uma saga espírita psicografada. Escreve também poesia, conto e crônica e colabora nos jornais de Poços de Caldas.

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