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O Pássaro e o Dicionário

por Chico Lopes *
publicado em 18/02/2004.

Ele me intrigava há muito tempo. Sempre o imaginara pequenino, negro, um ônix alado tão resumido, humilde e denso como seu canto repetitivo de duas notas. Dos seus muitos nomes populares sabia dois: “saci” e “peixe-frito”. Ouvir seu canto monótono e desolado me fazia pensar no “Blackbird” dos Beatles, emblema universal de uma profunda solidão noturna; os campos nevoentos da Inglaterra se fundiam em minha imaginação às matas mais triviais das cercanias de Novo Horizonte, ou melhor: uns pedaços de fins de quarteirão das ruas Santos Fonseca, Otaviano Marcondes, Antônio Sabino, Cesário Castilho, onde brinquei muito quando menino e onde conheci as primeiras lendas e histórias de assombração. Naquele espaço seu canto imperava nas madrugadas de insônia ou em tardes lentas, ociosas, e com as duas notas condensava um estado de espírito e uma paisagem. Embora o ponto de partida seja sempre o mesmo, da circunscrição saem ramificações que se confundem com o mundo inteiro. Assim é que, em outro plano, ouvindo o “Adagio con moto” da quinta de Beethoven, eu retorno à sombra de uma mangueira da casa de um vizinho num dia que talvez fosse de chuva e sinto uma vibração elegíaca que me vem tanto do quintal anônimo quanto da música universal.

Nossos veios mais secretos se comunicam com a alma do mundo e o indivíduo é esse templo irremediavelmente singular onde um ensaio original da espécie se processa. Sentimos coisas que não se parecem com nenhuma outra que outros sentem – e isso tanto nos exalta quanto nos restringe. Tentamos - se somos artistas – comunicá-las. E nem quando bem-sucedidos acreditamos tê-lo de fato conseguido.

Um dia, cismei de ir procurar informações sobre meu diminuto “blackbird” no Aurélio. Lá encontrei: Saci – Ave cuculiforme, da família dos cuculídeos, com duas subespécies, uma das quais ocorre ao N. e L., outra ao S. do Brasil. Tem coloração geral pardo-amarelada, com numerosas manchas escuras nas coberteiras das asas, topete avermelhado, com manchas claras e escuras, garganta, sobrancelha e abdome brancos. Alimenta-se de insetos e costuma pôr ovos em ninhos de joão-teneném. ( Sinônimos: martim-pererê, matim-pererê, matinta-pereira, matintaperera, matitaperê, peixe-frito, peito-ferido, peitica, piririguá, roceiro-planta, seco-fico, sem-fim, sede-sede, tempo-quente, crispim, fenfém)”.

Passando para a enciclopédia Delta-Larousse, mais uma decepção: “... tem cerca de 30 cm. de comprimento total, dorso pardo-acinzentado...”

Nada disso me impediu de continuar imaginando-o como no início: menor que um tiziu, delicado, solitário e concentrado como seu fi-fi monótono. Desta monotonia provém a sedução do canto. Parece uma condenação assumida com tristeza e humildade, uma súplica repetida até o fim dos tempos da mesma maneira a fim de comover alguma coisa ou alguém, perseverança impotente que enternece e incomoda.

Esse relógio noturno às vêzes acompanha o meu sono meio vigília e, entressonhado, é sempre o “blackbird singing in the dead of night” que o Aurélio e o Delta-Larousse desmentem.

“Sem-fim”... Este é o melhor de seus nomes populares. Porque o canto simples, despojado, ascético, consegue sugerir a infinitude da noite em que nem tudo dorme. Pousado em algum ramo oculto, o “peito ferido” de solidão sobre-humana, ele canta por mim e por um milhão de almas noturnas que nunca conseguiram dormir pensando em tudo que se perde lá fora, sob a lua.

Tenho vontade de sair da cama, vencido pela exasperação que a súplica discreta e contínua infunde, e dizer: “Take these broken wings and learn to fly. All your life you were only waiting for this moment to arise”. Mas, volto ao sono. E as duas notas continuam lá – lá onde? em quais ares? -, cavando, pendulares, uma outra espécie de silêncio nos silêncios. Induzem a dormir, mas a dormir como que no ar ou entre árvores, num vasto outro mundo em que pássaros e almas humanas se fundissem, indissolúveis.

Sobre o Autor

Chico Lopes: Chico Lopes é autor de dois livros de contos, "Nó de sombras" (2000) e "Dobras da noite" (2004) publicados pelo IMS/SP. Participou de antologias como "Cenas da favela" (Geração Editorial/Ediouro, 2007) e teve contos publicados em revistas como a "Cult" e "Pesquisa". Também é tradutor de sucessos como "Maligna" (Gregory Maguire) e "Morto até o anoitecer" (Charlaine Harris) e possui vários livros inéditos de contos, novelas, poesia e ensaios.

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Francisco Carlos Lopes
Rua Guido Borim Filho, 450
CEP 37706 062 - Poços de Caldas - MG

Email: franlopes54@terra.com.br

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