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Um sonho malogrado e um nazista longe dos clichês

por Chico Lopes *
publicado em 02/07/2009.

Vi, em dois dias seguidos, dois filmes que me fizeram refletir, não tanto por grandes qualidades cinematográficas, mas por personagens bem interpretados e por certas idéias que animaram as produções. Foram "Um homem bom", de Vicente Amorim, e "Foi apenas um sonho", de Sam Mendes, sem problemas para o leitor encontrar nas locadoras, no momento.

Começo por "Foi apenas um sonho", que é francamente depressivo. Em termos de penetração, o filme começa a errar pelo título nacional, que cretinamente "entrega" a história. E, convenhamos, qualquer filme que venha com um título desses é um desestímulo aberto, visto que é precisamente a expectativa de sonhar a raiz da ânsia por entretenimento, e ninguém gosta que se diga que aquilo que se está vendo na tela, embora todos saibam disso, terá sido apenas sonho - é uma oferta de luto e castração. O título original, "Revolutionary road", tendo em conta a pintura sinistra do conformismo norte-americano dos anos 50 que é o tema do filme, não passa de uma grande ironia, e é decididamente superior. "Revolutionary road" é a rua de um subúrbio onde o casal April e Frank vão morar.

April e Frank formam um casal comum, que se conhece, se apaixona e se casa em cenas elípticas bem feitas, e sua banalidade é defendida com glamour por uma dupla de astros de tamanho brilho que a produção não tinha como não interessar ao público. Quem não quererá, a princípio, ver um filme com Leonardo Di Caprio e Kate Winslet, o célebre casal de "Titanic"? Eles estão maduros, muitíssimo melhores como atores, e na certa entraram na produção com a expectativa de realizarem um drama sério, com cara de concorrente a Oscar. Conseguiram isso, mas o público não gostou.

Talvez porque o único prazer incontestável do filme seja o de ver duas pessoas muito bonitas sendo magnificamente interpretadas por dois atores que se entregam seriamente aos papéis, mas o casal, afundando numa vida conjugal tediosa, sem saída, vai nos dando calafrios. Um breve suspiro de alívio surge quando April decide que eles podem sair daquela vida chata, que, mesmo com dois filhos e já não tão jovens, poderão ir morar em Paris, ela trabalhará e permitirá que ele, por algum tempo, possa se dedicar a escrever. Se Frank tinha lá umas vagas veleidades de escritor, April tinha o sonho de ser atriz, desfeito já nos minutos iniciais do filme, quando participa de uma daquelas constrangedoras montagens teatrais amadoras que os familiares dos "atores" envolvidos se limitam a fotografar para o álbum de família. Frank a convence de que este sonho já é um malogro. O fato de ter Paris como sua derradeira utopia de vida livre, interessante, com gente realmente viva, é outra coisa irônica do filme - parece extraído do título da canção "April in Paris", ainda que esta se refira a outra coisa.

O filme pode incomodar o público brasileiro também por outras razões: April e Frank, ela mais que ele, detestam aquela vida de subúrbio americana dos anos 50, mas vivem muito bem, para os padrões da pequena classe média brasileira: casa muito bonita, naquele estilo sem cercas e muros, com dois filhos lindinhos brincando com o esguicho de água no jardim verdíssimo, vizinhos interessados (embora xeretas), Frank bem empregado etc e tal. É o sonho de muita gente, que não entenderá as razões do tédio e do inconformismo de April. Na verdade, parece capricho neurótico de uma mulher que, por outras razões, poderia se considerar "bem na vida", pela cartilha dessa classe. Ela se sente oprimida por quê? - deve perguntar-se o público, se é tão bonita e, ainda por cima, casada com Di Caprio...! Isso destrói a credibilidade do filme, em grande parte. E a produção é minimalista, investe no intimismo, explica pouco o que está acontecendo. Conta com que o público entenda, oferecendo cenas um pouco esquemáticas demais, como aquela que mostra Frank com seu chapéu, seu terno cinza, sua valise, misturado a centenas de homens que se vestem igualzinho a ele e até carregam a mesma valise, todos indo para o trabalho, num trem suburbano, feito "gado indo para o matadouro". É forçar a barra. Tudo isso é raso e o diretor, Mendes, que fez "Beleza americana" e se consagrou, não parece particularmente inspirado.

Os atores seguram essa coisa triste e constrangedora maravilhosamente. Mas, não acontece nada senão aquilo que o título brasileiro ridícula e funebremente profetizou. Em cenas isoladas, impressionam Michael Shannon, como um louco que diz grandes verdades sobre "a podridão do Sistema" (mas é tudo muito previsível também - o clichê da "verdade que vem pela boca de um louco") e Kathy Bates como a sua mãe deliberadamente alienada que, enquanto o filho angustiado e saído de sessões de eletro-choques protesta, vê um arco-íris lindinho lá fora...

No entanto, o filme é um risco inclusive para os casais casados já há algum tempo que forem, desprevenidamente, vê-lo - dará nervosismo, porque mexe em verdades desagradáveis, traz à tona lembranças de conflitos e tristezas que não teriam mesmo como ser resolvidos; o incômodo advirá da impotência de pessoas decididamente comuns que na certa já desejaram um heroísmo impensável para suas vidas e perceberam que nada é muito heróico nem sublime nem arrebatador no casamento e que os filhos arrastam casais para responsabilidades que castram seus sonhos e assim por diante. O espectador suspeita que as coisas, daquele jeito, só poderão ir de ruim a péssimas, e de péssimas a trágicas. Só vale mesmo para quem gosta de Leonardo e Kate, e ela, aliás, está muito melhor neste filme do que em "O leitor", pelo qual levou um Oscar.

*******

Já "Um homem bom" (no original, "Good") desperta um interesse a princípio patriótico/ufanista, já que vamos ver um filme com atores como Viggo Mortensen e Jason Isaacs dirigido por um brasileiro, Vicente Amorim, que, com o sucesso de seu "O caminho das nuvens", ganhou moral para uma carreira internacional. E a produção chega ao DVD depois de bem elogiada pela crítica, que viu qualidades na história de um bom homem, também comum, só que inserido no regime nazista. É tão forte o clichê do nazista-alemão frio e malvado no cinema que, de cara, isso já parece um grande mérito: um nazista pai de família, zeloso, trabalhador, que cuida da mãe doente, tem paciência com todo mundo, é passivo, cândido e sempre procura ajudar.

O filme até é forçado nesse sentido, mas é magnificamente ajudado por uma interpretação de primeira - a de Viggo Mortensen, que, de filme a filme, vai se mostrando um ator cada vez mais refinado (basta lembrar "Senhores do crime", de David Cronenberg, e "Appaloosa", de Ed Harris, os mais recentes). Viggo entregou-se ao papel, que pressentiu que lhe poderia dar um prestígio maior ainda de crítica, e deu-se muito bem. Ajuda que contracene com bons atores, não muito conhecidos, como Jason Isaacs, no papel de seu maior amigo, um psicanalista judeu que sabe que as coisas estão ficando pretas e mal entende como ele não percebe. O diálogo entre ambos, quando Isaacs lhe implora para conseguir uma passagem para Paris e até lhe oferece dinheiro, é antológico. Também são boas as atrizes que interpretam a mãe e a mulher do personagem (ele é um típico "bom homem atormentado por mulheres"). A perfídia nazista fica reservada para a amante que ele conseguiu - uma certa Anne que, num dia de comício nazista, com as pessoas passando eufóricas num parque, arrasta-o consigo para ver aquilo, dizendo: "Algo que faz as pessoas tão felizes não pode ser uma coisa ruim, não é mesmo?". Ela vai se tornando uma adepta fanática do nazismo de modo totalmente cândido, sem entender que há sim muita felicidade venenosa neste mundo. Mais tarde, será responsável pela entrega do amigo psicanalista, que se escondera em sua casa, aos nazistas. E, ao ver o marido sair numa "noite de caça" num uniforme negro, não resiste - abaixa-se e lhe faz algo que, evidente, pela expressão dele, nunca fizera, deixando-o desconcertado e deliciado. Tem a óbvia tara erótico/masoquista por autoridade (o uniforme-fetiche) que explica a adesão ao regime odiento.

É um bom filme, "Um homem bom", até por uns ares de produção despretensiosa, toda carregada pelo trabalho dos atores. Mostra uma verdade: os que aderem a um regime, seja ele qual for, estão muito longe do julgamento posterior que a História fará deste. São pessoas comuns, contagiadas por líderes enlouquecidos, que achariam esquisito demais sair do trilho e desobedecer à lógica do rebanho. Claro: os olhos do personagem principal se abrirão, e, aliás, de modo muito eloqüente, com o rosto de Viggo Mortensen passando por uma gama considerável de expressões, que não parece ao alcance da maioria dos atores medíocres (os Owen Wilsons) que há na tela americana hoje em dia. Vale conhecer.


Sobre o Autor

Chico Lopes: Chico Lopes é autor de dois livros de contos, "Nó de sombras" (2000) e "Dobras da noite" (2004) publicados pelo IMS/SP. Participou de antologias como "Cenas da favela" (Geração Editorial/Ediouro, 2007) e teve contos publicados em revistas como a "Cult" e "Pesquisa". Também é tradutor de sucessos como "Maligna" (Gregory Maguire) e "Morto até o anoitecer" (Charlaine Harris) e possui vários livros inéditos de contos, novelas, poesia e ensaios.

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Francisco Carlos Lopes
Rua Guido Borim Filho, 450
CEP 37706 062 - Poços de Caldas - MG

Email: franlopes54@terra.com.br

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