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Desastre imperdoável, o grande Daniel Auteuil e um faroeste sem rumo

por Chico Lopes *
publicado em 17/09/2008.

ANNETE BENING NÃO SALVA PRODUÇÃO EQUIVOCADA - Há filmes diante dos quais a gente só consegue mesmo lamentar a locação. E alguém deveria atentar melhor para a questão da propaganda enganosa, nesses casos, porque, sem maiores referências sobre determinadas produções, o consumidor as procura na contracapa dos DVDs, sendo levado a uma locação por chamarizes que não se cumprem; o truque habitual é reproduzir a citação de algum crítico de alguma publicação americana colocada de tal modo que pareça importante; o destaque funciona e muita gente se deixa convencer é por aí. No caso específico de "Correndo com tesouras", a citação diz tratar-se uma "comédia brilhante".

Bem, não é uma comédia. Se queria ser, falhou clamorosamente. Como humor negro, não funciona, e, como drama, menos ainda. O filme simplesmente não é nada, não achou seu tom e, na verdade, só depois de vê-lo, como incauto bem-intencionado, é que fui saber que a crítica americana em bloco o massacrara. Com toda razão. Os críticos às vezes exageram para bem, mas, quando caem matando num filme com unanimidade, o único conselho é evitá-lo, porque não há salvação.

"Correndo com tesouras" é a autobiografia de Augusten Burroughs, narrada em forma de diário (de modo canhestro, porque, de vez em quando, o filme se perde tanto que a gente fica esperando que o diário com a voz em off volte para pôr um pouco de ordem na mixórdia). Ele é um garoto criado por uma mãe metida a poeta que, frustrada em sua ambição e no casamento com um alcoólatra que tem toda razão em considerá-la uma chata monumental (talvez beba é por ter se casado com ela), cria o filho como seu maior fã e sua única platéia. O início, mostrando a relação dos dois com habilidade, é promissor, e de imediato a gente sente que o garoto vai virar homossexual, inevitavelmente, com uma mãe ególatra e possessiva daquele jeito.

Infelizmente, o filme começa a morrer quando tenta ser uma comédia absurda, com a entrada de um psicanalista, Dr. Finch, e sua família pinel, em cena. A maior parte do que acontece a partir daí é patético e chato, nunca cômico. É um filme que dá a impressão de uma imensa canoa furada, porque reúne atores de fama, como Annete Bening, Alec Baldwin, Brian Cox, Jill Clayburgh, Joseph Fiennes, Evan Rachel Wood, Gwyneth Paltrow, e tem um bom material que poderia render muito como comédia de humor negro, realmente, ou como um drama grotesco, vívido, denunciador. Aquela mãe e aquele filho, e aquela família do psicanalista, nas mãos certas, que filme não daria!

Mas o diretor é um novato, Ryan Murphy, que veio da televisão (o filme é desprovido de criatividade visual de um modo quase absoluto) e estreou com pé esquerdo. Annete Bening, como a poeta, papel principal, quase afunda a sua carreira, dessa vez. Não que não interprete bem. Interpreta muito bem, mas o personagem é indefensável e o diretor a deixa exagerar - e a interpretação over de um personagem com quem o público não consegue simpatizar simplesmente quase a liquida como atriz.
A poeta é daquele tipo que, ressentida por não ter atingido glória alguma, passa a ser uma crítica implacável da produção poética alheia (massacra uma pobre adepta de seu círculo numa leitura). É a encarnação do despeito. Abandonada pelo marido, começa a ter casos lésbicos com outras poetas que freqüentam a sua casa. Nunca a achamos uma vítima. Seu egocentrismo é grande demais.

Ninguém, aliás, se define. Burroughs (Joseph Cross), jogado para cá e para lá entre gente irremediavelmente maluca, tenta preservar a sua sanidade, e acaba nos braços de um gay vivido por Fiennes.Terminada a sua iniciação sexual, faz cara de quem não gostou e só nos resta imaginar o horror de sua experiência, mas estranhamente continua com o sujeito (ele parece não ter escolha diante de tudo que lhe acontece, não funciona como herói ou eixo narrativo e isso deixa o filme singularmente depressivo, indo de buraco em buraco). Brian Cox, bom ator, faz o Dr. Finch com garra. Mas é um personagem tão desparafusado e desagradável que a gente mal quer vê-lo, e torce desesperadamente para que, numa determinada cena, Joseph Fiennes o mande desta para melhor com aquela tesoura.

Em suma, nada funciona, senão o final, que não revelarei, é claro - mas funciona mais como alívio pelo suplício todo haver acabado.

UM GRANDE ATOR FRANCÊS - Daniel Auteuil é um dos meus atores favoritos do cinema, nos últimos anos. Sinto que não agrada a todos, mas se entrega aos seus papéis com uma convicção impecável, mesmo quando é fatal que vá desagradar ao público: ninguém consegue gostar muito do intelectual, marido de Juliette Binoche, que em "Cachè", de Michael Haneke, é acuado por um sujeito misterioso com uma gravação em vídeo do interior de sua casa e tem um segredo muito sombrio a esconder. Talvez a frieza de Auteuil nesses papéis seja um pouco excessiva. Ele não é só disso, claro, e já o provou até fazendo a ótima comédia "O closet". Mas eu o revi recentemente em "O adversário".

Esse filme, dirigido por Nicole Garcia, é de 2002, e passou meio despercebido no Brasil, fazendo em locadoras uma carreira meio invisível também. Há quem tenha gostado, mas a crítica o comparou desfavoravelmente ao filme anterior "A agenda", que alega que tratava da mesma história com um enfoque superior (quero deixar claro que não vi "A agenda" e não posso meter o bico nessa comparação).

Auteuil dá nele mais um de seus shows de imersão na vida interior de um personagem, agora ainda mais interiorizado do que outros, visto que é um homem mentalmente perturbado, que quer a todo custo esquivar-se a verdades que lhe fazem mal, e, como vive uma vida inteiramente falsa, suas vulnerabilidades são particularmente terríveis (por vezes, o prodígio de interpretação do ator faz com que nos sintamos mal, como se estivéssemos dentro do personagem, querendo um respiradouro, uma fuga: não queremos ser íntimos desse monstro - como a história é verídica, a perturbação é maior ainda). A trilha sonora é de Ângelo Badalamenti, compositor habitual dos filmes de David Lynch, e empresta mais frieza a uma direção fria.

O mal do cinema francês é essa frieza pedante, esse cerebralismo ralo, uma mania cansativa de desconstruir e desdramatizar, de aludir mais que contar por medo do sentimentalismo e da linearidade. Há muito diretor assim, empastelando cronologias e psicologias, confundindo deliberadamente, por afetação e nada mais. Se Auteiul consegue se impor nesse filme bambo é porque é um grande ator. E ninguém perderá em conhecer sua composição.

PAISAGEM LINDA, VINGANÇA PÍFIA - Não dá para recomendar "À procura de vingança", que reúne dois astros, Liam Neeson e Pierce Brosnan, senão pela...fotografia. As paisagens usadas como locações do filme são belíssimas.

É um faroeste estranho, que veio na onda de sucesso de "Os indomáveis", com Christian Bale e Russell Crowe, que tem tido boa procura nas locadoras e de fato é competente. Realizado em 2007, dirigido por alguém obscuro chamado David Von Acken, conta a história de dois homens (Brosnan e Neeson) que tiveram algum problema no passado. Desde o início, veremos uma perseguição encarniçada sem entender, e o filme só se preocupa em esclarecê-la lá pelo fim, fazendo-nos percorrer um longo percurso que vai do Oregon ao Novo México. O raciocínio óbvio de Von Acken foi ocultar do espectador a motivação dessa busca de vingança, mas errou feio - deixando-a para o fim, criou a expectativa de uma explicação fabulosa, que não há. Tudo é bastante pífio. Se a tivesse exposto logo no início, a produção seria mais bem sucedida. Brosnan e Neeson, se fossem astros de mais carisma, talvez salvassem a coisa. Mas, num roteiro oco, limitam-se a odiarem-se violentamente.

Essa volta dos faroestes parece promissora, ainda que esses filmes não estejam fazendo grande sucesso. O público para o gênero é um pouco problemático, visto que torce o nariz para as novidades que o desfiguram, e por vezes renovar um gênero tão marcado pela tipificação e pela rotina não é tarefa para qualquer um. Não há Clint Eastwoods dando em árvores. Von Acken, no entanto, não é um diretor desprezível. E nunca se sabe, num cinema de enxurrada, de comércio massacrador como o americano quando, do meio de uma produção fracassada, poderá emergir alguma coisa boa.


Sobre o Autor

Chico Lopes: Chico Lopes é autor de dois livros de contos, "Nó de sombras" (2000) e "Dobras da noite" (2004) publicados pelo IMS/SP. Participou de antologias como "Cenas da favela" (Geração Editorial/Ediouro, 2007) e teve contos publicados em revistas como a "Cult" e "Pesquisa". Também é tradutor de sucessos como "Maligna" (Gregory Maguire) e "Morto até o anoitecer" (Charlaine Harris) e possui vários livros inéditos de contos, novelas, poesia e ensaios.

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Francisco Carlos Lopes
Rua Guido Borim Filho, 450
CEP 37706 062 - Poços de Caldas - MG

Email: franlopes54@terra.com.br

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